06 junho 2007

CRIANÇAS


Creio que já afirmei com muita clareza o quanto aborreço esta cércea que se tornou sintoma de globalidade e que dá pelo nome de "o dia de ". Sem podermos ígnorá-lo, porque a poderosa máquina comercial agita a comunicação social nesse sentido, aí somos nós arrastados na onda das comemorações maiores ou menores, conforme o grau de intensidade desse tsu-nami... Chego a pensar que já ninguém prescinde desses lembretes porque dá outro sossego não ter que carregar com mais aquela preocupação :" não me posso esquecer do dia da Mãe", p. e. . E porque lá passou mais um Dia da Criança que agora, segundo creio, também acumula com mais uma ou duas dedicatórias (Já não vão chegando os dias para serem de dedicação exclusiva!), aconteceu que me afundei em comiseração por aquelas mães que agora, agora mesmo, estão a sofrer daquela espécie de amputação que é volatilizar-se-lhes, como por magia ,aquele filho que elas tinham ali agora mesmo, aquele filho que elas nem sequer puderam ver morrer, se é que morreu( será? )... E multiplicaram- se de repente casos com crianças, todos dolorosíssimos, e reavivaram-se casos de mistérios tão antigos, nunca esclarecidos, e subitamente o Mundo apareceu cheio de crianças que ...Era mesmo oportuno celebrar este tal dia? Em nome de quê ? Da esperança? Ou da desesperança ? Da dor dos pais ou do sofrimento das crianças? Porque , nunca tendo tido a Graça de ser mãe, dei em passar muito tempo a observar, a escalpelizar os procedimentos dos filhos dos outros, daqueles pequenos seres que eu achava mesmo intrigantes, misteriosos até.Percebi que, desde que nascem, as crianças vão adquirindo "humanidade"( não descobri uma palavra melhor), por aquisição de hábitos. Tal como se habituam às horas das mamadas ou das papas, habituam-se a um horário de dormidas ou dos banhinhos e também se habituam às caras, às vozes, aos braços que as envolvem, aos beijos e carinhos dos que lhes são próximos. E nós, adultos, achamos que esse habituar-se é já afecto. Mas quando será que realmente nascem os afectos ? Os afectos puros, aqueles que não advêm do físico, que não podem relacionar-se com qualquer tipo de proveito, poderão acontecer ainda antes daquelas idades em que choram, no silêncio dos seus quartinhos, quando sonham ou imaginam que se separam do Pai ou da Mãe ? O mundo infantil, da pureza sempre ingénua, afectiva, límpida e generosa é pura ficção dos adultos. A única diferença entre, por exemplo, os ressentimentos e aversões infantis e os dos adultos reside no facto de, nas crianças, tudo ser deveras pouco duradouro. No entanto, se solicitadas por causas idênticas, sempre podem repetir-se com igual ou superior intensidade e requinte as suas manifestações negativas. Parece-me que a criança não odeia, não tem capacidade de elaborar uma pulsão de ódio, mas é capaz de persistir numa qualquer rejeição com violenta persistência. E é também capaz de criar e utilizar métodos para imposição da sua vontade, perfeitamente por si mesma catalogados, desde cenas de gritos e lágrimas escandalosas, em público, às manifestações de histeria com repercussões desastrosas para todos os envolvidos. Embora as suas reacções sejam espontâneas, do seu íntimo podem brotar manifestações de um ego interesseiro e calculista que ela sabe manejar com uma mestria insuspeitável . Exibe uns ademanes naturais, uns olhares oblíquos ou velados, uns sorrisos aliciadores, em espantosos joguinhos de sedução que a nós, adultos, ou divertem ou enternecem, levando-nos a pensar mas quem lhe ensinaria isto? Também nos "a propósito" de certas conversas embora saibamos que são puramente imitativos, denunciam as crianças uma espantosa capacidade de associação, muito mais precoce do que nós imaginamos. E , ao vê-las actuar nos primeiríssimos tempos das suas relações em sociedade, damos connosco a pensar como ela é esperta e inteligente! E entramos gostosamente nos seus esquemas carregados de charme mas, misteriosamente, quão cheios já de duplas intenções ! É claro que, pela vida fora, tudo se vai aprimorando pela educação, pelos exemplos próximos , sendo que aquele ronronar que sabem fazer, como os gatinhos satisfeitos, se vai transformando em palavras, e se vai moldando até pelo habitat.
Cabe aos adultos estar atentos, ser hábeis junto das crianças, nunca se permitindo certo tipo de manipulações que as adulterariam e, de genuinas que são, passariam a ser apenas crueis arremedos de gente grande.
Por isto tudo, nesta efeméride deste ano, com os acontecimentos que nos têm horrorizado, eu não poderia deixar de partilhar a amargura sem remédio das pobres mães, mas dos meus pensamentos não consigo afastar a perspectiva de sofrimentos de tantas crianças, por me parecer que sei adivinhar nelas mais essa misteriosa capacidade de sofrer, na sua forma tão peculiar, sendo infantil... Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor ?

1 comentário:

Joana disse...

Magnífica exposição, de muito saber e experiência feita.

Jinhos.