02 junho 2007

Seriam sessenta anos

Há sessenta anos contados hora a hora, era também, como hoje, uma bela manhã de sol. Em casa, todos nos levantámos cedo
A nossa casa, Avenidas Novas, fins dos anos trinta, era grande,com quartos e salas espaçosos acompanhados pelo longo corredor,cozinha ao fundo, casa de jantar à direita, guarda- vento
de vidro craquelé com batentes de mola a resguardar a zona da entrada e das salas"de receber".
Mas existia apenas uma única casa de banho. Havia quarto de "criadas" mas não era hábito fazer-se mais do que uma casa de banho...
Dizia eu que, naquele dia ,todos em casa começámos a movimentarmo-nos cedo, segundo um horário fixado no sentido de a casa de banho ficar absolutamente livre a partir das onze horas.
E porquê? Porque era essa a hora em que alguém viria armar sobre os meus fartos cabelos o
vaporoso e simbólico véu de noiva cingido pelo seu diadema de flores e botões de laranjeira...
Sim ! Era o dia do meu casamento !
Um pouco antes das onze horas, já vestira a saia do meu lindíssimo vestido, composto de duas peças em seda moirée,quase branca, quase pérola. A saia, direita à frente, abria atrás,sobre a cintura, aquilo que, em linguagem de costura, se chama um "macho"e que depois ia abrindo em
múltiplas pregas que davam roda à saia e formavam,por fim, a cauda.Sobre isto, havia o casaquinho, muito justo,todo ele abotoado,até ao remate do pescoço, desde a cintura, por dezenas de pequeníssimos botões, tal como as mangas, com botõesinhos desde a mão até ao cotovelo.Foi um trabalhão para abotoar tanto botão, mas era uma coisa muito vieux-style que
eu adorava,tal como o enorme laço que ,na aba do casaquinho,atrás, dava a ideia de que as pregas que iam formar a cauda se despenhavam dali, como se de uma cascata se tratasse...
Mas ,a estas horas, já a casa começara a encher-se de amigos e pessoas de família, uns que nos acompanhariam à Igreja, outros que vinham só para ver "a menina",tais como todas as vendedeiras "freguesas"( naquele tempo iam vender-nos tudo a casa, desde o peixe à fruta), as criadas já reformadas e as empregaditas das lojinhas próximas. Havia entretanto um crescendo de enormes arranjos de flores,por todos os cantos.Como era moda da época,fazia-se a exposição dos presentes recebidos: eram as "corbeilles".Para isso se destinava uma das salas devidamente decorada e fora preciso estudar e criar espaços de circulação tal como também na sala de jantar,porque os chamados "copos de água"nessa época, eram servidos e feitos em casa.Essa também uma razão para a mistura de cheiros e perfumes que se esgueirava por todos os cantos da casa, juntamente com pessoas em corridinhas que abriam e fechavam portas...
Estava programado que eu sairia para a Igreja ao meio dia e quarenta e cinco e,ao meio dia certo, chegou o meu ramo de noiva, um bouquet de açucenas fresquíssimas que pareciam acabadas de colher. A minha Mãe apareceu deslumbrante num vestido preto,longo e muito drapeado, e com uma capeline preta guarnecida de plumas de vários tons de verde-água,muito esvoaçantes. E lá veio o meu Pai, lindo na sua farda de gala,com espada e tudo...
Como não se sabia sequer que um dia viria a existir uma coisa chamada telemóvel, não houve comunicações nervosas entre famílias de noiva e noivo .Tudo havia sido combinado, programado e rigorosamente cumprido.Alguém me disse a certa altura que o CARLOS ´já chegara à Igreja. .As nossas casas,de ambos, eram a meia dúzia de metros da Igreja de Nossa Senhora de Fátima.
Cheguei e,ao sair do carro, apercebi-me de que fazia um vento desalmado;segurei o toucado com a mão disponível, porque a outra ia agarrada ao braço do meu Pai.E, frente às escadas que tinham sido cobertas por uma passadeira vermelha,tivemos a surpresa de que o vento,incidindo de lado, enfunava cada degrau como se fosse um pequeno balão.Rapidamente a espada do meu Pai deixou de ser apenas decorativa e os dois,de braço dado ,fomos subindo degrau a degrau , tendo o meu Pai previamente aplanado com a espada cada espaço onde eu devia poisar o pé... Lá dentro, ninguém percebia porque levávamos tanto tempo a subir uma talvez dezena de degraus
O meu NOIVO ! Esguio,elegante,a envolver-me toda com o olhar e o sorriso que só eu lhe conhecia...O altar, os genufluxórios, NÓS. À nossa frente o senhor padre Augusto, franciscanonosso conselheiro,confessor e amigo;à minha esquerda os meus Pais e agora Padrinhos;à direita do noivo, o seu irmão e aVera sua mulher, seus Padrinhos.Recebemo-nos nas bençãos de Deus,no amor de Jesus,"até que a morte nos separe"...Olho,por acaso,para a esquerda e vejo escorrerem pelas faces do meuPai lágrimas grossas,silenciosas,que caíam sobre as medalhas e o azul da sua linda farda...Foi como um sinal de partida para o meu choro,soluçado, nada silencioso,que pôs o meu noivo na mais dilacerante aflição:" não estás feliz?"perguntava. E eu estava,sim,muitíssimo feliz, mas com uma nova realidade para o resto da vida:o peito manchado de lágrimas de um Pai ,elas só memória e presença de quanta pequena ou enorme coisa só por nós dois vivida na outra vida que tiveramos com AQUELA que fora o seu primeiro amor e minha MÃE,tão nova nos deixando sendo eu quase ainda bébé!Eram lágrimas só nossas, de um amor que ali mais ninguém recordaria.
Terminada a cerimónia,foi a festa,os votos dos amigos,as brincadeiras,as fotos...Sei que nada comi embora me aparecessem nas mãos vários pratos com coisas moito apetitosas que várias pessoas vinham generosamente trazer-me. Tinha sim aquilo a que se chama um nó na garganta, de felicidade, de emoção,de coração a transbordar de amores diversos...
Saímos,por fim.Ia começar finalmente a "nossa" vida !
Do "Ficarmos sós", claro que não se conta, porque é o secreto património de encantamento a que na vida todos temos direito.

4 comentários:

Anónimo disse...

Querida tia Maria de Lourdes,
estou aqui com a mãe e o seu texto lindissimo sobre o dia mais maravilhoso da sua vida tocou-nos bastante pois está lindissimo...
Um beijo grande das sobrinhas Vera e Isabel

cs disse...

eu não sou sobrinha, mas tocou-me na mesma o seu texto

uma ternura


:))

Carlos Alves disse...

Carissima Amiga
Tocante, belo, emotivo.
Estou certo que nem as palavras chegam para descrever a felicidade desse dia e o modo como ela ainda hoje tem reflexos.
Parabéns e obrigado por existir.
Carlos

Joana disse...

Ai... quero tudo assim! Mas, sobretudo a viva e apaixonada recordaçao sessenta anos depois! :)

Um beijinho grande.

P.S. Subscrevo em absoluto os três comentários anteriores naturalmente, mas tinha que lhe dizer a verdade. Quero mesmo!