30 novembro 2006

Sophia de Mello Breyner —— 3 momentos


Era quase no inverno aquele dia,
tempo de grandes passeios
confusamente agora recordados —
— A estrada atravessava a terra ao meio
E em rigorosos muros de pedra e musgo a mão deslizava —
Tempo de retratos tirados
de olhos franzidos sob um sol de frente,
retratos que guardam para sempre
o perfume de pinhal das tardes
e o perfume de lenha e mosto das aldeias...

A respiração de Novembro verde e fria
incha os cedros azuis e as trepadeiras
e o vento inquieta com longínquos desastres
a folhagem cerrada das roseiras...

Um pálido inverno escorria nos quartos
brancos de silêncio como a névoa.
Um frio azul brilhava no vidro das janelas.
As coisas povoavam os meus dias
secretas, graves, nomeadas...

23 novembro 2006

Recordações na cidade pelo nevoeiro

Extracto de memórias que tenho em livro.
Exemplo de meteorológicas sugestões foi hoje,em Lisboa,dia cinzento de Novembro,finamente embrulhado em nevoeiro, um friosinho fino a entrar-nos pelas narinas... ...E eu,pela rua, a caminho da Place Schumann, descendo até ao Berlémont, manhã cedo...Lá dentro, os elevadores, as alcatifas e as salas cujos quentinhos emanam dos madeiramenos que tudo revestem e parecem apenas feitos para abafar os nossos gestos e vozes. A grande bancada oval ou cicular com os seus apetrechos de som, ouvidos e olhos ávidos das nossas sempre diplomáticas palavras...E o respeito,muito respeito cívico imposto pelas bandeirinhas e tabuletas com nomes e símbolos que nos identificam e representam tantos outros países,como o nosso, em procura e por nosso intermédio, de tantos e tão necessários entendimentos ! Creio que nós, os intervenientes nesta estupenda e grandiosa missão de criar unidade a partir da multiplicidade, de fazer união do que, até então,era só individualismo( uns e outros às vezes utópicos), creio que nós nos sentimos todos mais ou menos intimidados perante aquelas bancadas envolventes de uma "bocarra" central,espaço vazio como uma goela de bicho,símbolo para muitos ,como para mim, do enorme vazio que tanta cabeça pensante dificilmente alguma vez conseguirá preencher satisfatoriamente, pelo menos enquanto actuando de forma tão aséptica e impessoal quanto nós o vamos fazendo, ali quase só números para as estatísticas da Eurostat,também ela asséptica e fria! Para nos sentirmos humanos, vale-nos o que, por detrás de nós,se desenrola de actividades logísticas várias: os tradutores,semi-murmurando nos seus camarotes; os secretários com os seus carrinhos atulhados de actas,notas,comunicados,estatísticas,mapas, memorandos, que metodicamente vão distrsbuindo;as hospedeiras com carrinhos mas estes com cafés,chás,águas e bolachinhas para todos os gostos, espalhando um rasto cheiroso que nos conforta e dá uma nota quase doméstica a toda aquela parafernália de profissionalismo e eficiência... ...
Depois,é o retorno ao cinzento frio nevoento exterior...Bruxelas anoitece introvertida,tal como amanhece.
Vamo-nos sózinhos ou em pequenos grupos,pelos boulevards super-povoados,super-iluminados, ou retomamos as auto-routes de saída para as banlieues que nos permitem ouvir o marulhar ao longe das matas húmidas e aromáticas como,por exemplo, a caminho de Waterloo...
É aqui que regresso à minha Lisboa de NOVEMBRO,hoje meteorologicamente disfarçada de cidade europeia,desligada, por este dia, dos ventos e marés cheirando a Áfricas e Índias...

19 novembro 2006

Amadeo de Sousa Cardoso

Eu, que sou a mulher dos nevoeiros, posso dizer que fiquei embriagada de cor agora, na GULBENKIAN. Haverá já mais de trinta anos sobre o meu primeiro contacto directo com Sousa Cardoso,em Amarante, quando precisamente se instalava um museu muito incipiente, com pouco mais que meia dúzia de quadros apenas a mostrarem-no sem nenhuma outra preocupação que não fosse essa, porque ali era a sua terra( Manhufe ), porque quem pensava nessas coisas, entendia que ali era o seu lugar. Aliás, foi também por essa época que tive a "graça" de visitar a casa de Teixeira de Pascoais que a família conserva intocada na parte do que eram os seus aposentos com aquela famosíssima janela donde se abrange a majestade do Marão... Na verdade, se não houvesse por ali tanta beleza natural perfeitamente esmagadora, será que nestes dois homens "enormes" teria brotado da mesma forma tanto "estilo",tamanho virtuosismo? Não será correcto admitir que certos caldos de gestação são propícios ao apuramento das sensibilidades?
Voltando a Lisboa,avenida de Berne, agora. É o que se chama uma exposição "à séria", como os jovens gostam de dizer. Houve o cuidado de deixar em destaque as múltiplas influências que Amadeo recebeu em Paris nesse princípio do século XX em que convergiam para aquela cidade os artistas das mais variadas nacionalidades com os seus apports específicos,mas procurando todos as grandes directivas de uma modernidade que se traduzia por vários -ismos e transbordava para todas as formas de arte. Cubismo,futurismo,uns vislumbres de arte nova,algum exotismo,tudo isso marca uma espécie de secções na exposição, permitindo-nos "arrumar" melhor o nosso conhecimento de Amadeo. Mas,aprendizagens à parte, o que se traz de lá é um extraordinário banho de cor e de alegria.E é bom ter-se um tal património como nosso.Agora que tantas vezes nos vamos sentindo defraudados e entristecidos por isso...

14 novembro 2006

Outono___Miguel Torga


Tarde pintada
por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
que há tanta fantasia
neste dia,
que o mundo me parece
vestido por ciganas adivinhas,
e que gosto de o ver e me apetece
ter folhas, como as vinhas.

11 novembro 2006

São Martinho

Dia de São Martinho !___Vai-se à adega e prova-se o vinho. Ouvimos dizer isto com mais ou menos variações regionalistas, mas sempre com a mesma intencionalidade. Os franceses dizem :Pour la Saint Martin, tue ton porc et goûte ton vin. Mas também há esta maravilhosa pausa nas chuvas a que chamamos Verão de São Martinho...E hoje temo-lo em Lisboa, radioso, com uma luz única,só mesmo desta época... Dizem também os franceses que à la Saint Martin, la neige est en chemin:si ele n'y est pas le soir, elle y sera le matin e os espanhóis dizem que por San Martino el invierno viene de camino... Sempre a ancestral ligação à Terra, às coisas da Terra, aos conhecimentos empíricos do tempo e das produções correlativas e daí às festividades pagãs às quais se "colaram" as grandes celebrações religiosas dos cristãos...Todos os católicos amamos a belíssima simbologia da semente que é preciso que morra para que a planta renasça, por exemplo... Mas há coisas menores às quais acabamos por até já deixar ofuscar a real religiosidade em prol das quantas relações populares que se foram tecendo à sua volta.Quem se lembra de que São Martinho pode considerar-se o primeiro pacifista porque,pertencendo a uma família de militares, se recusou a combater numa guerra que considerou injusta e se apresentou voluntariamente para seguir no seu cavalo, na frente da legião a que pertencia, sem a espada e apenas erguendo uma cruz, recusando-se assim a matar alguém, mas não se furtando à presença, só que numa outra espécie de combate ? A situação da partilha da capa da sua farda é bem mais conhecida, porque a ela se tem sempre associado a bonita ideia de que o Verão surgiu porque Deus o teria querido recompensar e ao mesmo tempo proteger do frio que a dádiva da capa o faria sentir...Também se relaciona este Verão extemporâneo, em França, com o funeral do então já bispo de Tours, falecido em 8 deNovembro de397. Como se formou um enorme cortejo para, em dois dias de viagem, acompanhar o corpo do bispo, milagrosamente se teria estabelecido um tal calor, que, não só os peregrinos não sofreram com as intempéries, como até brotaram rosas nos jardins !... Sempre uma aura de mistério a relacionar os factos objectivos com transcendências que o povo guarda para enriqucer a sua elaboradíssima cultura... E as nossas preocupações de verdade histórica e coisas semelhantes...? Dia se São Martinho é o calor e a bondade e a paz e as coisas boas da Terra que nos são oferecidas.Não é bom ?

05 novembro 2006

Medo

Será porque envelheci? Será porque estou mais precavida? Será porque me chegam ao ouvido mais histórias ?... Hoje,no meio da gente anónima, de dia ou de noite, em espaços mais ou menos concorridos, mais ou menos iluminados, tenho MEDO, desconfio...Assim, em abstracto...Que saudades de quando tinha por lema "GUARDA:FORSE ACCANTO A TE C'É UN ANGELO !"

02 novembro 2006

CHUVA

Esta chuva não é só mágoa.
É companhia.
Andou comigo hoje, todo o dia,
uniforme, cerrada, obcecante...
Não me deixou sózinha um só instante !
Como um mau pensamento que persiste,
como a dor que nos dói suavemente,
como essa lágrima a que se resiste
inexplicavelmente...