24 fevereiro 2007

JULGAMENTO

Se para preencheres a solidão
precisares de trair
ou renegar os códigos sensatos
aceites de antemão,
não serei eu, irmão,
que virarei pra baixo o meu polegar
na hora dos juízes que hão-de vir
ler-te acordãos pra penas e pecados,
imponentes no seu poder juigar...
Não estarei eu, irmão,
nessa denúncia do segredo antigo,
nessa vileza de chamar traição
ao desamparo que,por um amigo,
te fez de instintos,
mais que de razão...

21 fevereiro 2007

CINZAS

Nos primeiros tempos do cristianismo, os cristãos que considerassem ter prejudicado ou ofendido alguém, pecando e reconhecendo-o em sua consciência, dirigiam-se à sua Igreja no primeiro dia da quadragesima, após o período mais ou menos orgíaco do carnem vale, e recebiam, sobre as suas cabeças, cinzas abundantes com que os sacerdotes os aspergiam antes de os conduzirem à porta do templo para que, a partir dessa ocasião, e para verdadeira expiação não voltassem a entrar lá,não podendo passar do átrio exterior,durante os quarenta dias que iam seguir-se,não lhes sendo portanto permitido tomar parte ou simplesmente assistir às cerimónias próprias desta época.
As cinzas de que eram cobertos simbolizavam a precaridade da vida em pecado__LEMBRA-TE DE QUE ÉS PÓ__ mas, ao mesmo tempo, a expiação oferecia ao penitente a possibilidade de se afirmar na sua confiança na MISERICÓRDIA DE DEUS, pois sabia que, cumprida a penitência com real humildade e arrependimento, voltaria a ser recebido na Casa de Deus.
Como máxima manifestação de humildade e desapego das venalidades, os penitentes substituiam as suas roupas habituais por uns toscos sacos de serapilheira com apenas umas aberturas para a cabeça e braços e com isto vestido passavam toda a quadragesima.
Longe deste rigor, vamos nós hoje receber ,do nosso sacerdote, um sinal de cruz feito pelos seus dedos previamente mergulhados em cinzas, sinal que as nossas testas guardarão exteriormente por alguns segundos, porque o pó é pó .E a precaridade desta duração também nos pode dar muitos tópicos de meditação. Do que fica no interior das nossas cabeças, há outro registo que aqui não vem ao caso. Mas destes sinais exteriores,pergunto-me : há uma outra cinza, vivo sob outra espécie de vento, ou sou eu que perdi demais a minha capacidade de ser PÓ ?...


18 fevereiro 2007

Domingo de CARNAVAL

Estamos em pleno período de Carnaval .Lisboa está a disfrutar os seus dias de pacatez e certamente isso acontece por esse país além, em todas as cidades e vilas e lugares que não se sentiram vocacionados para o gozo e divertimento públicos em data e hora marcadas pelos calendários internacionalizados.Se olharmos esta época como uma boa oportunidade de pausa para tarefas que mais ou menos a justifiquem,ela é pura e simplesmente deliciosa...Recordo as minhas fériasinhas em Saint Cergue e no Tirol, aquelas escapadelas de um só dia às concorridíssimas pistas de neve cujos nomes só recordo quando há transmissões de corridas pela TV...
Mas isso não é aquilo a que vulgarmente se chama CARNAVAL. Esta festividade,como quase todas as que entraram na tradição popular, com mais ou menos legitimidade, vai radicar~se em tão antigas como deturpadas origens.
A degradação social e moral que veio acontecendo progressivamente antes da chegada de CÉSAR ao poder,em ROMA, acrescida da quase total aceitação pelos Romanos dos nomes dos deuses gregos em substituição dos dos seus próprios deuses, tornou como que mais liberal e depois mesmo libertina a relação dos homens com os deuses, visto que os deuses gregos tinham características menos míticas e qualidades mais humanas do que os deuses romanos. E assim as inúmeras festas que eram feitas em suas homenagens foram adquirindo configurações especialíssimas consoante fosse a "esfera de acção" do deus celebrado. Foi assim que, em 186 AC, as Bacanais levaram à prisão e execução inúmeras pessoas que tomavam parte nas festas.Baco era o nome que os Romanos haviam retirado de uns gritos de euforia produzidos pelos gregos nas festas de DIONISOS, deus do vinho e dos prazeres.
A isto e muito mais se deve o CARNEM VALE que apareceu não logo, logo,como a medieval tradução literal do"adeus à carne", mas ainda como aquela festa em que nada parece mal, como ficou registada no adagiário português.
Ignoro como o Mundo girou para que o grande Carnaval das loucuras fosse acontecer noBRASIL,ou como, no séculoXVIII, em Veneza, requintadas damas e viciosos Casanovas criaram a sua lindíssima tradição carnavalesca. Porém intuo que os rebolados nus brasileiros devem ter muito que ver com o clima e quedo-me perplexa ao ver em Portugal, agora , despirem-se com estes frios, ao sabor da imitação mais descabida...
A tradição portuguesa nunca foi de nus. Estou a pensar em como se estragava a roupa, nos anos trinta ( séc.XX), quando grupos de foliões, ao virar de uma esquina, nos esborrachavam ovos e pastéis e outras coisas pastosas, sobre os fatos e os cabelos. O que eu própria sofri sendo atacada à saída do colégio , com bisnagas esguichando líquidos de que eu tinha verdadeiro terror.E as pancadas secas de uns certos saquinhos jogados com mestria para se esvaziarem de areia sobre as nossas cabeças e roupas. Mas, agora mesmo, os executantes da Dança dos Cuzes, em Cabanas de Viriato, estão vestidos da cabeça aos pés...Tudo isto nos fala de um carnaval de rua. Mas as mais lindas versões de Carnavais de Salão, bem portugueses ,de princípios do século XX,são as que me foram contadas _vividas_ pelos meus Pais.No Porto e em Beja.
No Porto,uma das noites de Carnaval era de ida a um dos teatros da cidade, todos vestidos rigorosamente de gala,senhoras e senhores. E então,"jogava-se" ,em troca das serpentinas das actrizes, atirando para o palco caixas com joias verdadeiras...Em Beja, havia, no Clube, três bailes de gala ( um por cada noite), onde as ceias eram volantes.Na hora própria, entravam no salão de baile pequenos carrinhos puxados por carneiros de pêlo alvíssimo decorado com laços de fitas de cores,carrinhos esses que vinham "carregados" com as mais variadas iguarias armadas artística e tentadoramente.Os carrinhos iam circulando e todos se iam locupletando a gosto...
A que distância de tudo isto fica a actual passagem de cortejos onde se mostra uma preferência nítida pela perversão na confusão dos sexos ou pelas piadas pesadas sobre política ou sobre factos sociais,tudo muito nu e...ao frio
Aproxima-se então uma outra época em que todos vamos saber porque dizemos CARNEM VALE...

14 fevereiro 2007

Dia dos Namorados

E não é que hoje é outra vez "dia de" ?
Dia dos Namorados. De São Valentim. Um São Valentim que até pode ser um de dois visto que , do século lll até hoje, não se adquiriu a certeza sobre qual deles era o que, bondoso e apiedado, casava às escondidas os soldados romanos aos quais uma disciplina rigorosa proibia o casamento.
Mas em Portugal sempre tivemos um único querido e popular santo casamenteiro que foi o nosso Santo António. Sabemos bem que nas primeiras idades do Cristianismo houve muita vez um aproveitamento de festividades ainda pagãs, ligadas quase sempre aos ciclos da Natureza, adaptando-as habilmente a celebrações novas que o povo continuaria a memorizar, ainda que fosse por outras causas. Assim estes São Valentins, que viajaram por outras paragens sem se tornarem necessários a Portugal porque os nossos NAMORADOS, sempre que precisaram de ajuda, tiveram o seu SANTO ANTÓNIO. Ligados a ele,quantas trovas populares, mais ou menos citadinas, mais ou menos de ambiente rural, quantos manjericos lisboetas, quantos bailaricos, quantas fogueiras para saltar e quantas lendas ! Não resisto à tentação de deixar aqui registado este "mimoso" poema de AUGUSTO GIL onde a candura da história não deixa de aflorar pontos-chave da vida do Santo.

O PASSEIO DE SANTO ANTÓNIO
Saíra Santo António do convento
a dar o seu passeio costumado
e a decorar num tom rezado e lento
um cândido sermão sobre o pecado.
Andando,andando sempre, repetia
o divino sermão piedoso e brando
e nem notou que a tarde esmorecia,
que vinha a noite plácida baixando...
................................................................
O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
o Menino Jesus baixou do céu,
...............................................................
Perto, uma bica de água murmurante
juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.
De braço dado para a fonte vinha
um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,
ele trazia o coração no peito !
Sem suspeitarem de que alguém os visse,
trocaram beijos, ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
_ Ó Frei António, o que foi aquilo?
O Santo, erguendo a manga do burel
para tapar o noivo e a namorada,
mentiu com a voz doce como omel:
_ Não sei que fosse.Eu cá não ouvi nada...
Uma risada límpida e sonora
vibrou, em notas de oiro pelo caminho.
_ Ouviste ,Frei António ? Ouviste agora?
_Ouvi,Senhor,ouvi.É um passarinho...
_ Tu não estás com a cabeça boa!
Um passarinho a cantar assim?
E o pobre Santo António de Lisboa
calou~se, embaraçado, mas por fim.
corado, como as vestes dos cardeais,
achou esta saída redentora :
Se o Menino Jesus pergunta mais,
queixo-me a sua Mãe, Nossa Senhora !
......................................................................
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: _Jesus,
são horas. E abalaram pró convento.
´
Foi nestes namorados que hoje me apeteceu pensar.Sem presentes do estilo shoping-center, sem jantares com menus afrodisíacos, sem ramos de muitas dezenas de rosas... Apenas com beijos ,se possível, ao luar, com alegria transbordante e... com um suavíssimo Santo António a
pactuar com a beleza de um amor assim...

11 fevereiro 2007

Dia de...NOSSA SENHORA DE LOURDES

"Hoje é o dia de ser bom" diz António Gedeão numa das suas mais amargas ironias, esta sobre o dia de Natal em casa de uma família de classe média- alta do seu, do meu, do nosso tempo.Dia de ser bom tão contemporâneo e contraditório que o menino-herói dessa família exulta de felicidade a utilizar em delírio os presentes que recebera, alvejando ruidosamente toda a gente da casa que, colaborante, simula alegremente morrer,atirando-se para o chão depois de " ferida" pela bela arma-presente de Natal que o menino mostra saber manejar eficazmente...
Queria, com muita vontade, afastar de mim os pensamentos que, nem só por causa de Gedeão,me assaltam nestes "dias de" que a nossa sociedade global nos prodigaliza agora, a todos os pretextos, com verdadeiros "lembretes" para que aquilo que simbolizam não deixe de interpelar todo o Mundo. Mas, para meu desgosto, uma espécie de grande tsu-nami comercial invadiu todas as praias das nossas mais afectuosas memórias e os "dias de"são muitas vezes um enorme carnaval ou um festival de aparências"que é de bom tom "manter.
Culpas? De quê ? De quem ?
Mas hoje eu só tenho que cantar hossanas,porque tenho o meu "dia de": 11 de Fevereiro.Nossa Senhora de Lourdes. Parafraseando o meu amigo Sebastião da Gama, pela FÉ é que vou. Foi este o nome que me deram e que uso como quem usa um brazão de fidalguia porque ele é o que me resta como herança espiritual de uma Fé talvez ingénua que deu a este meu nome uma categoria de mensagem que eu sempre receio não ter sabido interpretar.
Mas é esta a herança que recebi de alguém de quem mais nada pude guardar...
E não é que, por causa da irradiação espiritual de tudo o que os simples humanos têm experimentado em redor daquela gruta perto dos Pirinéus, pela fervorosa devoção a Nossa Senhora, se decidiu fazer do seu dia o DIA MUNDIAL DO DOENTE ?´
É pois mais um "dia de" no dia de hoje . Mas ,se entre os dois anteriores existe uma forte e séria razão de conexão, eis que nos surge anexo um outro "dia de" que aqui caiu apenas por razões de conveniências várias dos senhores políticos. É dia de votações para um REFERENDO, apanágio democrático de que o povo não deve prescindir, de vez em quando.
É muita coisa grave para um só dia!!!
Vota-se, opinando sobre a Vida ou Morte, tentando desembaraçarmo-nos da teia de sentimentos, conceitos e preconceitos que as nossas formações morais e sociais enredaram à nossa volta. Mas, a par,vamos ter que pensar mais na morte do que na vida, se queremos ajudar outros( ou que nos ajudem a nós) a pacificar a aproximação dessa meta inevitável...
Não é natural que espere que NOSSA SENHORA DE LOURDES me indique o melhor caminho?

04 fevereiro 2007

Um lapso fugidio


Um relance,
um lapso fugidio
e um PASSADO, todo,
irrompe
como a torrente de um rio
ou bicho desgovernado...


Desses anos anulados
restavam só horas mortas
e a poeira a cair...


Dos castelos que, depois, iriam vir
ficaram vultos loucos e alados,
nas nuvens que se vêem
ao poente...


Era a esses que, então,
chamávamos PRESENTE...


Tecido terso,
rara tessitura
de estuantes cordões umbilicais !


Farrapos
longos haustos,
simples ais,
cada fase na outra se entretece.


Nenhuma, cada uma será p'ra nunca mais?