13 março 2011

Reconciliação - Alberto Caeiro

Sendo hoje o primeiro domingo da quaresma deste ano, procurando nós durante este período reabilitarmo-nos,já não digo perante o nosso Deus, mas mesmo perante nós próprios, todos os princípios da nossa catequese de uma vida inteira são agora particularmente revisitados, não apenas recordados, mas de tal maneira revistos, que alguns nos aparecem iluminados com uma nova luz nunca percebida antes... Foi assim que me aconteceu agora posicionar-me de outras maneiras, dentro daquele difícil capítulo de " amar os nossos inimigos", que para mim se traduz em amar TODOS, porque,embora haja pessoas de quem não gosto muito, inimigos não tenho. E então, espantosamente sem razão aparente, fui ler pela enésima vez alguns heterónimos de Fernando Pessoa dos quais geralmente não gosto, como pode não se gostar de Paula Rego por exemplo( sendo, no entanto, apaixonada pela Mensagem)- Comecei por aquele a que o Pessoa chama O Mestre :ALBERTO CAEIRO. E li algo que me fez duvidar se não estava a fazê-lo pela primeira vez, encantando-me de tal maneira que li e reli tantas vezes, como que a penitenciar-me do desprezo antigo...Foi uma reconciliação de tal forma que decidi fazer um pequeno excerto do poema motriz da "reconciliação" e trazê-lo aqui ao registo no meu post para que ,se tiver leitores, eles partilhem comigo o prazer do gozo das qualidades da expressão do sentimento do poeta, tanto na sua formatação literária como na da sensibilidade toda humana e humilde que ele aqui assume sem disfarce. Do poema VIII de O Guardador de Rebanhos « Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano que é natural, Ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei com toda a certeza Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. E a criança tão humana que é divina E esta minha quotidiana vida de poeta, E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre, E que o meu mínimo olhar Me enche de sensação E o mais pequeno som, seja do que for, Parece falar comigo. A Criança Nova que habita onde vivo Dá-me uma mão a mim E a outra a tudo o que existe E assim vamos os três pelo caminho que houver, Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso segredo comum Que é o de saber por toda a parte Que não há mistério no mmundo E que tudo vale a pena. A Criança Eterna acompanha-me sempre. Adirecção do meu olhae é o seu dedo apontando. Omeu ouvido alegremente atento a todos os sons São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. Damo-nos tão bem um com o outro Na companhia de tudo Que nunca pensamos um no outro. Mas vivemos juntos e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda. Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No degrau da porta de casa Graves, como convém a um deus e a um poeta, E como se cada pedra Fosse todo o universo E fosse por isso um grande perigo para ela Deixá-la caír no chão. Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens E ele sorri, porque tudo é incrível. Ri dos reis e dos que não são reis, E tem pena de ouvir falar das guerras, E dos comércios, e dos navios Que ficam,fumo no ar dos altos mares. Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade Que uma flor tem ao florescer E que anda com a luz do sol A variar os montes e os vales E a fazer doer aos olhos os muros caiados. Depois ele adormece e eu deito-o, Levo-o ao colo para dentro de casa E deito-o, despindo-o lentamente E como seguindo um ritual muito limpo E todo materno até ele estar nu. Ele dorme dentro da minha alma E às vezes acorda de noite E brinca com os meus sonhos. Vira uns de pernas para o ar, Põe uns em cima dos outros E bate as palmas sozinho Sorrindo para o meu sono. Quando eu morrer, filhinho, Seja eu a criança, o mais pequeno, Pega-me tu ao colo E leva-me para dentro da tua casa. Despe o meu ser cansado e humano E deita-me na tua cama E conta-me histórias, caso eu acorde, Para eu tornar a adormecer. E dá-me sonhos teus para eu brincar Até que nasça qualquer dia Que tu sabes qual é... Esta é a história so meu Menino Jesus. Por que razão que se perceba Não há-de ser ela mais verdadeira Que tudo quanto os filósofos pensam E tudo quanto as religiões ensinam ?

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