Estamos a atravessar uma época da vida do nosso país em que, por causa da implementação de várias reformas promovidas pelo governo em praticamente todas as áreas das nossas actividades cívicas ou sociais, somos levados a estabelecer comparações, a formular processos de aceitação ou de recusa muito pessoais, e a, quase sem darmos por isso, sermos inflamados pelas mais ou menos ruidosas manifestações de rua de que tomamos conhecimento pela comunicação social e que já se vão tornando habituais, visto que de todas as áreas surgem os que queriam outra coisa e não a que lhes é dada.A verdade é que o viver neste nosso país deixou de ser igual àquele a que estávamos habituados. Por muitas e muitas razões que não caberia aqui dissecar.E que dizer então das diferenças que vêm ao encontro das pessoas da minha geração? Nós, aqueles que vivemos a segunda Guerra Mundial, estremecemos com a novidade do poder atómico, conhecemos o fazer e depois o desfazer do Muro de Berlim, e que das guerras desconcertantes já haviamos conhecido a Civil de Espanha e viemos a suportar em nova angústia a Guerra do Ultramar, nós os que ,cansados de quase tudo, nos deslumbrámos com a Revolução dos Cravos e começámos a sonhar com o tal país que sabíamos ser possível, nós os que haviamos trazido para este país novo uma pequena trouxa com os tesouros que achávamos que devíamos guardar (tradições, educação, memórias, crenças, verdades, História, solidariedades...), nós os que, amando todos com amor-verdade a velha Europa, ainda não tinhamos percebido( e creio que ainda não percebemos)como seria difícil acertar o passo com ela,para uma vida em comum, com um dinheiro em comum... ... Sim, somos nós os que nos sentimos agora mais estranhos no meio de estranhos ...
E há dias soube que só mesmo no fim deste ano de 2008 poderá aceder a uma nova consulta alguém que anda a coxear há meio ano porque há meio ano lhe foi diagnosticado um pequeno quisto por detrás de uma rótula, com o aviso de que seria bom que o seu volume não aumentasse para não prejudicar o andar e de que,se isso se desse,deveria ser operado como é óbvio.
Comecei então a recordar aquele tempo em que não havia o hábito de se ir aos hospitais senão quando era recomendado por aquele médico já nosso amigo que nos tratava os sarampos, as "bexigas" e as diarreias e nos auscultava, carregava na barriga e dizia de que estávamos padecendo.E vinha a nossa casa sempre que era preciso.Hoje,ninguém vive sem frequentar um qualquer hospital.As pessoas queixam-se, mas, sem esse ponto de convergência dos sofrimentos, ninguém se sente gente. É também por isso que deixou de se nascer em casa e praticamente também deixou de se morrer em casa. Parece até que a casa não é mais do que um usufruto a que se tem acesso mas não é já um local de raíz, um vínculo a uma terra, a um "clã", a uma qualquer associação de bairro...É um local efémero para onde entramos ao colo de alguém,visto termos nascido na maternidade,e de onde sairemos um dia levados pelos gatos-pingados ou pelos bombeiros ou maqueiros,no caso de nela morrermos ou de sairmos para ir morrer no tal hospital... Pujantes, em pleno gozo de todas as nossas faculdades,tornámo-nos pouco afeiçoados á casa.Também é verdade que as tais reformas governamentais parecem induzir-nos a essa forma de vida, uma vez que predomina pela Europa uma moda que eu reputo de trovadoresca :a da mobilidade.Mas ,consumistas como se espera de nós, vamos enchendo a casa, marcando-a, impregnando-a de coisas que muito falam de nós, de como somos família, de como nos entrecruzamos dentro dela, até que um dia ela regurgita de sombras, de silêncios, de ecos, qual película impressionada por flashes mais ou menos rápidos, projectados sobre as nossas presenças, mesmo fugazes. É assim que eu descubro uma razão para a existência de "casas assombradas"... Quantas vezes nos parece possível termos ouvido a voz de alguém que já partiu?
E vermos a sombra de alguém que já é apenas sombra? E ouvirmos o abrir da porta como só alguém fazia? E cheirarmos um cigarro há muito apagado para sempre?E até o guizinho da coleira do gato que também partiu... Sei que da efemeridade das presenças,resta a perenidade de todas as "marcas".Contra isto não há "mobilidade" que tenha poder.
Nada tem poder contra o charme indelével das nossas recordações !...
3 comentários:
"Da efemeridade das presenças,resta a perenidade de todas as "marcas"". Acabou de formular um aforismo, não acha?
Jinhos.
P.S. As suas recordações recordações em forma de perguntas retóricas são do mais tocante que já li por cá...
Simplesmente maravilhoso.
Uma pungente realidade, embalada pela poesia das palavras como só a senhora as sabe usar.
Calorosa saudação e obrigado por partilhar connosco
Um amigo
Carlos Alves
O túmulo dos mortos é o coração dos vivos...enquanto os vivos que os receberam andarem pela vida...
Maria
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