17 abril 2007

EVIDÊNCIAS

EVIDÊNCIAS


Perdida um pouco a noção do tempo em que tive a sorte de ir contando com ela, hoje calculo em mais de vinte e cinco anos o período da minha vida durante o qual, regularmente, às quintas feiras, ela vinha passar o dia em minha casa unicamente para fazer costura.
Baixinha, muito magra, feições regulares, cabelo cuidadosamente lavado e curto, ela falava num tom suave, ligeiramente marcado pela toada alentejana, musicalidade que guardara da sua origem e de uma meninice vivida no seu Alentejo, servindo em casas senhoriais, ainda quase menina. Dizia que dessa época da sua vida trouxera o saber lidar com as coisas bonitas e boas das boas casas, o saber cuidá-las, o dar-lhes valor. E também o saber conviver com as “senhoras”, o estimá-las, o compreender quando e quanto a estimavam também.
E das costuras saltava muita vez, por gosto, para as compotas e marmeladas, no outono, para as filhós e as rabanadas, no Natal. E, muitas vezes, passava à tábua de engomar, para contornar com a ponta do ferro, com enorme mestria, os bordados difíceis e as rendas delicadas. Toalhas, naperons, lençois do meu enxoval à moda antiga, saíam das suas mãos mais tesos e com mais relevo do que em novos!
Mas a sua verdadeira opção profissional era a costura. Aprendera apenas os rudimentos. No resto era autodidacta.
Se acaso no seu percurso de costureira “ a dias” encontrava senhoras que sabiam e aplicavam técnicas da “arte”, ela aprendia com elas tudo o que achasse que valorizaria o seu trabalho.
E foi assim que se fez uma excelente executante de qualquer modelo que se lhe mostrasse, em figurino ou do qual simplesmente se lhe desse uma descrição. Porém, com a simplicidade que era sua natureza, nunca arvorou pretenciosismos de nenhuma espécie. E isso o provava, sendo igualmente aplicada e diligente a passajar um rasgão em qualquer pano de cozinha, como a fazer aproveitamento de retalhos com alguma criatividade em sacas ou pegas para tachos ou a pregar molas e botões onde fossem precisos. Daí passava, com a maior naturalidade, ao corte de um brocado ou de um veludo, para uma toilette minha.
Em tantos anos de convívio, pudemos falar das nossas vidas uma à outra. Éramos amigas!
E houve pormenores de profunda e dolorosa intimidade criada nem sequer através de confidências: apenas na presença de evidências!
Um dia, chegou a minha casa alquebrada, lívida e tarde, o que não era sua prática habitual. Acerquei-me dela um pouco mais e vi manchas vermelhas e arranhões profundos no seu pescoço, nos braços e nas pernas.
Chorou nos meus braços.
Acarinhei-a como foi possível. Limpei-lhe as feridas, untei-a com pomadas balsâmicas, a minha empregada preparou-lhe um chá calmante.
Ninguém fez perguntas. Apenas lhe pedi que não trabalhasse. E deixámo-la em silêncio.
Eu sabia (já ela mo havia contado) que o marido – um carpinteiro bêbado, jogador e pouco amigo de trabalhar – tinha saído de casa havia algum tempo, após vários e violentos desacatos em casa, quase sempre por não se querer levantar manhã, à hora a que se levanta quem trabalha. Choravam os filhos por um lado, desesperava a mulher por outro; todos eram maltratados .
Pois, neste dia, esperara-a, e ali mesmo, na paragem do autocarro, sovara-a até que alguns transeuntes lhe acudiram. E assim a tivemos em casa, sofrendo física e moralmente, na mais profunda das profundas humilhações que pode sofrer uma mulher, ainda por cima amiga do que é belo, organizado e pacífico... Dizia-se (na terra dela, e também na minha, havia esse conceito) uma “mulher de vergonha”, o que encerra uma enorme abrangência psicológica e moral, mas nem por isso separada do físico.
Quantas mais situações dolorosas e ofensivas deste seu conceito ela não teve que suportar!
Depois, foi o criar os filhos, sozinha.
O vê-los revelarem-se à medida que cresciam... O filho, cada ano com mais semelhanças com o caracter do pai. Das filhas só uma foi ficando empreendedora, diligente, perfeccionista, como a mãe. A outra herdou, do pai, a preguiça, mas desenvolveu sozinha uma imensa ambição que a levou a um casamento e depois a algumas relações reveladoras da sua voracidade pelo “ter” e da sua impreparação para “manter”. De tudo isto, trouxe dois filhos, de dois pais. Para a avó, vencidos os desgostos, foram estes as suas alegrias que até já nem ousava esperar.
E passou a trazer-nos retratos dos netos, a contar as suas graças, primeiro, os seus êxitos, depois.
Andava um pouco mais feliz quando o filho, feito o serviço militar, resolveu casar-se e ir viver a sua vida. Em boa hora, porque de novo, em casa, começara a haver alguém que não queria levantar-se, de manhã...
Veio então uma nora sui-generis, “mulher de cafés”, no dizer da sogra.
De trabalho, na casa do filho, falava-se com uma noção diferente, com conotações diferentes das que eram suas conhecidas. Eram folgas, turnos, serões, compensações, o “desemprego”...
Que fazia a nora? Fumava. Fumava muito. E bebia cervejas. Saía de casa só para ir beber uma “cervejinha”...
E o filho, que fazia? Andava de emprego em emprego. Era serralheiro.
Aprendera na “tropa”, mas, no seu entender, ninguém lhe pagava quanto merecia.
Destes dois nasceu um filho. Outro neto. Outra alegria para a avó.
E os cafés da mãe ? E os empregos do pai? Disse-lhe alguém que o neto-bébé ficava horas e horas sozinho em casa.
Novos sofrimentos. Novas confrontações. Mas agora com uma nora. Das difíceis lutas de mulheres, por um homem, por uma criança, que sabia esta avó, mansa e doce, tão sofrida e tão pouco “urbana”, por comparação com esta nora, assim diferente?
Foi nisto tudo que se foi fazendo velha.
Mais velha do que a própria idade.
Chorou tanto, coseu tanto que os seus olhos começaram a dar sinais de cansaço.
O que ela mais receava era não poder continuar a coser.
Da sua casa, onde acabara por ficar sozinha, onde conhecia de cor as esquinas, os cantos, as pregas dos tapetes, a altura dos degraus, vieram dizer-lhe, um dia, que iria ser demolida, como as outras por ali perto, porque iria ser construída naquele local uma nova e espampanante urbanização.
Não quis acreditar. Esperou.
Mas não deixou de chorar.
Até que a operaram aos dois olhos.
Já entretanto tivera que deixar as casas onde sempre trabalhara, porque não via para coser.
Tornou-se evidente que, em casa, não poderia mais bastar-se a si mesma. E foi nessa altura que reapareceu a questão da casa, do bairro, da demolição. Era agora, sim, que a Câmara se propunha a realojar as famílias, desafectar as casa.
Foi o golpe da misericórdia!
Encontraram-lhe um Lar!
Felizmente um bom Lar. Criado e mantido por uma organização religiosa católica. Ela aí se instalou, perfeitamente compreensiva da situação, conformada, quase contente por ir passar a sentir-se como que protegida.
Como se movimenta bem, como sempre esteve no hábito de contar só consigo, no lar, ao seu jeito educado, quase cerimonioso, procura não incomodar ninguém, basta-se a si mesma, em tudo o que é possível. Às vezes sai, desde que seja para fazer percursos que já conheça muito bem. Faz umas pequenas compras pessoais, umas visitas...
È que a operação aos olhos não foi muito bem sucedida. Surgiram complicações que nunca permitiram que recuperasse completamente a visão.
Como a minha casa é relativamente próxima do lar e ela conhece de cor estas redondezas, assim me vem visitar, nunca esquecendo datas de aniversários ou de outros quaisquer acontecimentos que marcaram a minha vida.
Traz-me sempre uma flor, um presente.
Hoje, quis demorar-se. Almoçar.
Percebi que precisava de que a ouvissem e facilitei a conversa.
Falou muito do lar.
E de súbito brotou da sua boca catadupa de palavras, de queixas.
Não do lar. Não das religiosas. Não das actividades: - “imagine a senhora que até me puseram a representar teatro!...” – e ria, maravilhada com o que conseguira fazer.
O que a desespera, o que a põe fora de si é a convivência com as outras habitantes do lar. Falsidades, invejas, ciúmes mesquinhos, maldadesinhas industriosas, implicações miudinhas, desconfianças, intrigas...
A narração das pequenas histórias exemplificativas de tudo isto, histórias que se desenvolvem no dia-a-dia, na hora-a-hora daquela convivência não desejada, mal suportada, durou uma tarde inteira, com avanços e recuos, com repetições enfatizantes, pormenores rebuscados...
Quando, por fim, se despediu, agradeceu, agradeceu. E porquê? Se eu, desta vez, entontecida pelas histórias, até me esqueci dos habituais presentinhos de marmelada, um bolinho, uma compota...
Penso que o tê-la ouvido, o tê-la deixado aliviar-se daquele saco de mágoas, o tê-la deixado sentir-se mais próxima do seu antigo clima de confiança, do seu antigo mundo de relações, o tê-la deixado reviver a sua mais-valia individual, fora daquele mundo de comunidade forçada onde agora se move, penso que, neste dia, foi o melhor presente que podia ter-lhe dado.
Saiu, sabendo eu e ela, que iria voltar de outras vezes, sabendo que aqui poderia, uma vez mais, encontrar o alívio para uma nova espécie de mágoas...

E foi então que se me instalou um nó na garganta, porque acabara de se me tornar evidente a inevitabilidade de uma espécie de divisória que, a certa altura de todas as vidas, se ergue, barrando um percurso, obrigando a outro.
Basta, para isso, que qualquer parte do nosso mecanismo físico claudique, umas vezes apenas porque simplesmente envelheceu, outras vezes, porque os insidiosos disparos das doenças podem colher-nos à queima-roupa ou, tendo corroído de mansinho, resolveu eclodir num certo dia, como a lava de um vulcão adormecido...
De repente, para todos nós, num certo dia, tornar-se-á evidente que é forçoso passar para o outro lado da divisória.
Adeus independência, adeus escolhas próprias, mesmo até: adeus solidão!
Doce e reconfortante solidão que nos permite sermos donos de nós mesmos, das nossas memórias até às nossas manias.
Doce e reconfortante solidão!
Doces sinais de vida, ainda!...

2 comentários:

Carlos Alves disse...

Sublime! Mais a mais, porque tive o gosto de conhecer uma "avó" cuja vida se assemelhou, em parte, com esta que descreveu. Foi bom ter tido a honra - e o tempo - de conhecer aquela "minha avó" - mulher de luta (senhora), exemplo de mãe, também ela modista.
Exemplos de perseverança, de ânimo, de resistência, de trato, entre outros, tenho eu o privilégio de recolher de quantos dessa geração com quem convivo.
De momento, a minha "evidência" é sabê-la de entre aqueles.
Obrigado e bem-haja por existir. Saiba que ainda tem muito que fazer deste lado da "divisória". E a solidão... o quanto me é grato quebrá-la...

Joana disse...

Tenho a sensação que sempre que cá venho repito-me ou digo algo semelhante e assusta-me que por isso pense que não sou sincera..., mas cá vai: Gostei imenso deste post! :) Gosto sempre de todos os seus posts porque todos me tocam, mas gosto de diferentes maneiras, porque me tocam de modo particular.

A minha vida é o tempo que a Maria de Lourdes contabiliza que já "a" conhece. Também conheço algumas histórias assim, nenhuma tão bem escrita, e sei, porque vinte e cinco anos dos meus chegam para saber, que, como acaba por rematar, indepêndencia, escolha, solidão são/podem ser sinónimos de juventude - para a grande maioria dos casos, e de jovialidade - para uma minoria como a Maria de Lourdes. E são doces, muito doces, ao contrário do travo que me fica na boca quando acabo de ler este texto. Tenho a certeza que esse seu "ainda" foi tomado de empréstimo de outros, como ela, porque seu mesmo - basta passar por este cantinho e deter-se um pouco - é o "sempre", jovial, doce e confortante, da soli... autosuficiência.

Jinhos.