As primeiras notícias que ouvi, consciente, já totalmente fora daquele limbo dos momentos iniciais de cada acordar, foram as de que um devastador incêndio estava ainda a acabar de devorar dois prédios na Avenida da Liberdade, mesmo ali já perto dos Restauradores. Um deles há anos devoluto. Oco. Tanto quanto me lembro, sem grandes sinais exteriores de deterioração, como tantos outros cuja aparência nos confrange, espalhados um pouco por quase todos os bairros mais antigos de Lisboa. E assim foi que todo aquele caudal habitual debitado por todos os fazedores de notícias da manhã de ontem, mesmo não havendo felizmente vítimas ,veio até nós impregnado dos medos, das extrapolações, dos " choradinhos", dos "o que é que sentiu quando..." a que já vamos estando habituados, o que é pena, porque acaba por já quase nos imunizar contra coisas que, na sua genuina tipicidade, são deveras dramáticas e merecedoras de uma nossa muito maior atenção. E até de desgosto, pela verificação da nossa impotência enquanto cidadãos que, amando a nossa cidade, gostariamos de ver nela, sempre, a nossa bonita terra, mais bonita que qualquer outra, isto é, melhor para si e para os que a povoam, velhos, novos, pobres, menos pobres, solitários, filósofos ou poetas... Porque afinal é da sua gente que acaba por também resultar o cariz de uma cidade. Dos desgraçados que acabaram por escolher para morada uma bela casa abandonada que irá diluir-se em chamas ao surgimento da mais ou menos próxima fatalidade, a cidade não pode, não deve alhear-se, mas fica com eles mais triste, menos propícia a uma felicidade que todos merecemos... Por isso a desejava eu fora das parangonas destes noticiários e limpa e livre das ruinas mal disfarçadas, das catástrofes mais ou menos prováveis e das imprevidências mais ou menos impugnáveis...
No turbilhão de pensamentos como estes, em que a minha solidão me leva a desejar tanto sentir-me "parte" de algum "todo", volta a reformular-se-me o problema daqueles que, na nossa cidade, não sendo da nossa família, não sendo amigos de infância ou de desempenho profissional, não sendo nossos companheiros de estudos, são no entanto as pessoas que vivem mais perto de nós, que acompanham voluntária ou involuntariamente cada passo de cada dia das vidas que temos, que vão sabendo das nossas fraquezas e das nossas forças, que se apropriam com ou sem maldade, com ou sem solidariedade, de algumas preocupações e algumas alegrias nossas,que conhecem intimidades , desde hábitos de vida, manias ou manhas, até ao mais secreto das nossas saúdes... Os VIZINHOS... Vivo no mesmo prédio há cinquenta e sete anos. E,durante todo este tempo, só em dois dos andares houve mudança de habitantes. Sendo um prédio de apenas três andares, com direito e esquerdo, somos tão poucos que seria impossível vivermos paredes- meias durante tanto tempo sem que entre nós não tivesse crescido uma relação especial. Mas ( e para mim a pergunta é recorrente )que relação é essa ? Se me reportar a alguns conhecimentos históricos, recordo que nos primordios ainda de uma pré-civilização, o instinto de sobrevivência e de consequente defesa levou os primeiros grupos de seres humanos a juntarem-se, constituindo pequenas células que os sociólogos já consideram com muito interesse enquanto esboços de uma socialização mais ou menos tendente a consolidar-se. Com o progresso da HISTÓRIA assistimos ao nascimento de cidades, onde ,por exemplo, os Romanos já contavam com o aproveitamento do espírito gregário dos vizinhos para formarem as suas civitates. E daí ao aparecimento dos MUNICÍPIOS, nunca o elo de ligação entre vizinhos deixou de constituir uma força socializante. Portanto, não me parece descabido considerar a sério a relação de todos nós, moradores do mesmo prédio, como uma relação sui-generis mas efectiva, real. E nunca de pretender ignorar ou desvalorizar.
Quando existam trinta ou quarenta vizinhos dentro de um só prédio, como nos grandes imóveis destaLisboa séculos XX - XXI, para além de termos que contar com uma maior mobilidade deles ,inerente a muitos novos factores próprios da moderna vida social e económica, percebemos quanto seria difícil uma relação de proximidade entre tanta gente e como é até natural que muitos nem tenham oportunidades para conhecer-se. Aliás,persiste uma espécie de "regra de ouro ", que sempre foi respaldo de gente a viver em proximidade, e que já vigorava nos meus tempos de menina : não devemos intrometer-nos com vizinhos, nem tão pouco permitir que os vizinhos se intrometam connosco.Isto tão só porque pode haver perigos morais ou mesmo materiais numa relação de intimidade com alguém que só se conhece superficialmente. E não será pelo facto de ser vizinho que alguém de mau carácter irá modificar-se... Além de que a"imposição" de uma presença nunca será agradável e será de pequenos contactos atempados e oportunos que se irá tecendo uma boa relação de vizinhança. Mas, em nome de tal precaução ,será possível não se sentir algo de especial por aquelas pessoas que conhecemos jovens, que depois casaram e tiveram filhos, os quais cresceram sob os nossos olhos e vieram a casar também , pessoas que, mais tarde, começaram a ter doenças e vieram a perder maridos, filhos ou pais, e ficaram em solidão, envelheceram, precisando de amparo moral ou físico, mesmo quase debaixo do nosso tecto, só porque entre o nosso e o evoluir das suas vidas há um patamar ou um lanço de escadas ? Sei que sofreria de facto se alguma destas pessoas desaparecesse de ao pé de mim.E sofreria como? Como iria colocá-las dentro da relação daqueles que já perdi? Como simplesmente VIZINHOS !... Não se trata de um parentesco e nem sei se poderá ser sempre uma amizade.
A simples ideia de partilha em situações de mera conjuntura acabou por fazer nascer laços. Como na Pré-História ! ... Dir-me -ão que se tem visto "brotar" e desenvolver ódios ou desamores entre vizinhos quase sem razões .Mas isso mesmo é prova da especificidade deste tipo de relacionamento. Para mim, olhando os noticiários das tragédias urbanas que trazem para a rua , em noites e madrugadas de pavor, todos aqueles vizinhos sofridos, aterrados e irmanados no sofrimento do susto e do medo, fica-me sempre mais intensa a convicção de que é preciso para exprimir tudo isto criar mais do que a palavra que me faltava : vicinidade... um espírito, um sentimento novo, uma vivência à qual não podemos negar um importante lugar nas nossas vidas,Esta casa, este bairro, esta rua, esta CIDADE, teriam sido os mesmos para mim se não tivesse tido estes meus VIZINHOS ?...
1 comentário:
Como pensa nisto tudo?
Acho que a valorização do vizinho é francamente geracional. Nenhuma pessoa da minha idade conta com os vizinhos para o que quer que seja, até porque não os conhece os vizinhos, tê-los-á visto uma, no máximo duas vezes, no corrente, lançou-lhe um bom dia vazio de tudo e desatou a descer ou a subir as escadas do prédio, conforme...
Sinais dos tempos...
Jinhos.
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