25 abril 2007

25 de ABRIL

...um dia, Portugal não mais aguentou e amanheceu num Abril como nunca ninguém tinha visto antes.
Quanto a mim, foi realmente uma coisa feliz, o facto de a chamada REVOLUÇÃO dos CRAVOS ter eclodido numa manhã, quando o grosso dos lisboetas se preparava já para sair de casa, para iniciar mais um dia de trabalho. Não sei como, em que altura do dia, aconteceram tantas outras revoluções no nosso país ou nos países estrangeiros, mas parece-me singularmente acertado que esta, deste nosso Abril, nos entrasse pelos quartos e pelas casas de banho, graças àquele Radio Clube Português mais uma vez metido nestas coisas de actuar sobre o acordar de uma população meio adormecida...É que, por esta circunstância, ficámos para sempre a poder falar de Abril em lindíssimas metáforas todas reportadas a esse acordar, alvorecer, nascer, começar e todos os seus sinónimos que expressassem a vontade de “partir para outra”, porque o regime já exaurira todas as capacidades de entusiasmo que, mesmo que tentássemos, já não conseguíamos de modo nenhum reactivar.

Houve então um turbilhão de coisas bonitas, a seguir a estas horas de acordar! Lisboa, a medo, apesar dos pedidos emitidos pelo Rádio Clube, foi saindo para a rua...Sabia-se que lá para a Baixa é que estava a “tropa”. Os dos bairros mais populares mais próximos pensaram logo que os soldados (“coitadinhos”!) deviam ter fome, ou não tivessem eles passado a noite em viagens...E lá foram prontamente aparecendo braços estendidos com púcaros de café a fumegar, em direcção aos soldados acastelados nos seus “chaimites”. De quem seria a ideia do que veio logo a seguir ? Teria mesmo sido a da pragmática Celeste Caeiro que, no Rossio, deu um cravo vermelho a um dos soldados que lhe pedira um cigarro que ela não tinha ?
Um cravo mais para aquele outro soldado, “ outro para si, senhor alferes!”, outro para o marinheiro, no Chiado ... e foi um mar de cravos encarnados, uma onda crescente e multiplicadora, que viria a dar um nome a esta revolução!
Iamos já nas margens do meio dia e já era por todo o lado o alarido –
Afinal era no Carmo, o centro de tudo. Lá é que estava o Salgueiro Maia (alguém também lhe dera um cravo) a confirmar-se como esteio da nossa confiança. Equilibrando-se em cima de uma árvore, o velho Sousa Tavares descobria o ponto estratégico para captar a sua reportagem tal como dezenas de outros mais novos infiltrando-se por todos os lados. Depois, a televisão veio a mostrar-nos tudo...Mas quem lá podia estar via primeiro, estava LÁ. !

Olha, olha, o Spínola entrou agora no Carmo !!!
Foi chocante, quando saiu Marcelo Caetano. Mas aí já se cantava em toda a Lisboa “Grândola vila morena, o povo é quem mais ordena " As movimentações no Terreiro do Paço e suas redondezas já chegavam ao resto da cidade como um ecoar de trovoada que se afasta...O dia foi chegando à acalmia da noite. Mas o que nunca ninguém vai poder roubar-nos é a beleza daquela manhã de sorrisos e cravos, de emoções tão novas e estimulantes. E " depois do adeus ", cantado como senha, primeiro, e depois como romântica lembrança pelo tão jovem Paulo de Carvalho, depois de "ficarmos sós", cada um em suas casas com a sua memória da Revolução, realizámos quanto agora teríamos que dar denós a este jovem país.

24 abril 2007

SAUDADE

...e quando foi manhã
tinhas partido.
Eu era
o destroço
sobrado
de uma luta sem glória...

Quantas manhãs depois
vieram recordar-me
as investidas feitas,
sempre, por nós os dois !


Contra a vileza
e a subtil maldade,
contra a hipocrisia
e a mediocridade,
contra o lugar-comum,
a dença e a má sorte
e contra o déjá-vu
e os assédios da morte...


A recordar-te assim,
foi-me o tempo passando
e esqueci-me de mim...
Só quando fui capaz
de, um dia, separar
o meu do teu viver,
reparei no que andara,
...e estava a entardecer !

20 abril 2007

MIA COUTO

"Instantaneando" a minha reacção quando soube da atribuição do PRÉMIO UNIÃO LATINA DE LITERATURAS ROMÂNICAS ao meu apreciadíssimo MIA COUTO,aqui estou, a apetecer-me imenso ser capaz do seu "FALINVENTAR" para dizer do enorme prazer que experimento ao lê-lo.Será mesmo lê-lo? É que ,pelas suas páginas, parece que reboa uma sonoridade toda nova e pode ouvir-se "nhenhenhar" o motor do velho automóvel,"cambalhotar" o mar,"bazarinhar" a "gentania"...E depois há como que uma certa mestiçagem da idade da inocência com os "satanhocos" de "carantonheação" que faz "minguar o coração" e esta mistura traz uma tal pureza que nos refresca como uma boa sombra, quando há muito calor.MIA COUTO diz que tem uma paixão por gatos e por isso mesmo adoptou aquele nome que o seu irmão pequeno lhe chamava.Será essa uma afinidade entre nós de que só tenho que orgulhar-me porque não é "um quem" qualquer que entende de gatos...Nem tão pouco é um qualquer que recebe este prémio atribuido por um júri representativo de trinta e tal países e que já premiou José Cardoso Pires, Agustina Bessa Luis e António Lobo Antunes.

17 abril 2007

EVIDÊNCIAS

EVIDÊNCIAS


Perdida um pouco a noção do tempo em que tive a sorte de ir contando com ela, hoje calculo em mais de vinte e cinco anos o período da minha vida durante o qual, regularmente, às quintas feiras, ela vinha passar o dia em minha casa unicamente para fazer costura.
Baixinha, muito magra, feições regulares, cabelo cuidadosamente lavado e curto, ela falava num tom suave, ligeiramente marcado pela toada alentejana, musicalidade que guardara da sua origem e de uma meninice vivida no seu Alentejo, servindo em casas senhoriais, ainda quase menina. Dizia que dessa época da sua vida trouxera o saber lidar com as coisas bonitas e boas das boas casas, o saber cuidá-las, o dar-lhes valor. E também o saber conviver com as “senhoras”, o estimá-las, o compreender quando e quanto a estimavam também.
E das costuras saltava muita vez, por gosto, para as compotas e marmeladas, no outono, para as filhós e as rabanadas, no Natal. E, muitas vezes, passava à tábua de engomar, para contornar com a ponta do ferro, com enorme mestria, os bordados difíceis e as rendas delicadas. Toalhas, naperons, lençois do meu enxoval à moda antiga, saíam das suas mãos mais tesos e com mais relevo do que em novos!
Mas a sua verdadeira opção profissional era a costura. Aprendera apenas os rudimentos. No resto era autodidacta.
Se acaso no seu percurso de costureira “ a dias” encontrava senhoras que sabiam e aplicavam técnicas da “arte”, ela aprendia com elas tudo o que achasse que valorizaria o seu trabalho.
E foi assim que se fez uma excelente executante de qualquer modelo que se lhe mostrasse, em figurino ou do qual simplesmente se lhe desse uma descrição. Porém, com a simplicidade que era sua natureza, nunca arvorou pretenciosismos de nenhuma espécie. E isso o provava, sendo igualmente aplicada e diligente a passajar um rasgão em qualquer pano de cozinha, como a fazer aproveitamento de retalhos com alguma criatividade em sacas ou pegas para tachos ou a pregar molas e botões onde fossem precisos. Daí passava, com a maior naturalidade, ao corte de um brocado ou de um veludo, para uma toilette minha.
Em tantos anos de convívio, pudemos falar das nossas vidas uma à outra. Éramos amigas!
E houve pormenores de profunda e dolorosa intimidade criada nem sequer através de confidências: apenas na presença de evidências!
Um dia, chegou a minha casa alquebrada, lívida e tarde, o que não era sua prática habitual. Acerquei-me dela um pouco mais e vi manchas vermelhas e arranhões profundos no seu pescoço, nos braços e nas pernas.
Chorou nos meus braços.
Acarinhei-a como foi possível. Limpei-lhe as feridas, untei-a com pomadas balsâmicas, a minha empregada preparou-lhe um chá calmante.
Ninguém fez perguntas. Apenas lhe pedi que não trabalhasse. E deixámo-la em silêncio.
Eu sabia (já ela mo havia contado) que o marido – um carpinteiro bêbado, jogador e pouco amigo de trabalhar – tinha saído de casa havia algum tempo, após vários e violentos desacatos em casa, quase sempre por não se querer levantar manhã, à hora a que se levanta quem trabalha. Choravam os filhos por um lado, desesperava a mulher por outro; todos eram maltratados .
Pois, neste dia, esperara-a, e ali mesmo, na paragem do autocarro, sovara-a até que alguns transeuntes lhe acudiram. E assim a tivemos em casa, sofrendo física e moralmente, na mais profunda das profundas humilhações que pode sofrer uma mulher, ainda por cima amiga do que é belo, organizado e pacífico... Dizia-se (na terra dela, e também na minha, havia esse conceito) uma “mulher de vergonha”, o que encerra uma enorme abrangência psicológica e moral, mas nem por isso separada do físico.
Quantas mais situações dolorosas e ofensivas deste seu conceito ela não teve que suportar!
Depois, foi o criar os filhos, sozinha.
O vê-los revelarem-se à medida que cresciam... O filho, cada ano com mais semelhanças com o caracter do pai. Das filhas só uma foi ficando empreendedora, diligente, perfeccionista, como a mãe. A outra herdou, do pai, a preguiça, mas desenvolveu sozinha uma imensa ambição que a levou a um casamento e depois a algumas relações reveladoras da sua voracidade pelo “ter” e da sua impreparação para “manter”. De tudo isto, trouxe dois filhos, de dois pais. Para a avó, vencidos os desgostos, foram estes as suas alegrias que até já nem ousava esperar.
E passou a trazer-nos retratos dos netos, a contar as suas graças, primeiro, os seus êxitos, depois.
Andava um pouco mais feliz quando o filho, feito o serviço militar, resolveu casar-se e ir viver a sua vida. Em boa hora, porque de novo, em casa, começara a haver alguém que não queria levantar-se, de manhã...
Veio então uma nora sui-generis, “mulher de cafés”, no dizer da sogra.
De trabalho, na casa do filho, falava-se com uma noção diferente, com conotações diferentes das que eram suas conhecidas. Eram folgas, turnos, serões, compensações, o “desemprego”...
Que fazia a nora? Fumava. Fumava muito. E bebia cervejas. Saía de casa só para ir beber uma “cervejinha”...
E o filho, que fazia? Andava de emprego em emprego. Era serralheiro.
Aprendera na “tropa”, mas, no seu entender, ninguém lhe pagava quanto merecia.
Destes dois nasceu um filho. Outro neto. Outra alegria para a avó.
E os cafés da mãe ? E os empregos do pai? Disse-lhe alguém que o neto-bébé ficava horas e horas sozinho em casa.
Novos sofrimentos. Novas confrontações. Mas agora com uma nora. Das difíceis lutas de mulheres, por um homem, por uma criança, que sabia esta avó, mansa e doce, tão sofrida e tão pouco “urbana”, por comparação com esta nora, assim diferente?
Foi nisto tudo que se foi fazendo velha.
Mais velha do que a própria idade.
Chorou tanto, coseu tanto que os seus olhos começaram a dar sinais de cansaço.
O que ela mais receava era não poder continuar a coser.
Da sua casa, onde acabara por ficar sozinha, onde conhecia de cor as esquinas, os cantos, as pregas dos tapetes, a altura dos degraus, vieram dizer-lhe, um dia, que iria ser demolida, como as outras por ali perto, porque iria ser construída naquele local uma nova e espampanante urbanização.
Não quis acreditar. Esperou.
Mas não deixou de chorar.
Até que a operaram aos dois olhos.
Já entretanto tivera que deixar as casas onde sempre trabalhara, porque não via para coser.
Tornou-se evidente que, em casa, não poderia mais bastar-se a si mesma. E foi nessa altura que reapareceu a questão da casa, do bairro, da demolição. Era agora, sim, que a Câmara se propunha a realojar as famílias, desafectar as casa.
Foi o golpe da misericórdia!
Encontraram-lhe um Lar!
Felizmente um bom Lar. Criado e mantido por uma organização religiosa católica. Ela aí se instalou, perfeitamente compreensiva da situação, conformada, quase contente por ir passar a sentir-se como que protegida.
Como se movimenta bem, como sempre esteve no hábito de contar só consigo, no lar, ao seu jeito educado, quase cerimonioso, procura não incomodar ninguém, basta-se a si mesma, em tudo o que é possível. Às vezes sai, desde que seja para fazer percursos que já conheça muito bem. Faz umas pequenas compras pessoais, umas visitas...
È que a operação aos olhos não foi muito bem sucedida. Surgiram complicações que nunca permitiram que recuperasse completamente a visão.
Como a minha casa é relativamente próxima do lar e ela conhece de cor estas redondezas, assim me vem visitar, nunca esquecendo datas de aniversários ou de outros quaisquer acontecimentos que marcaram a minha vida.
Traz-me sempre uma flor, um presente.
Hoje, quis demorar-se. Almoçar.
Percebi que precisava de que a ouvissem e facilitei a conversa.
Falou muito do lar.
E de súbito brotou da sua boca catadupa de palavras, de queixas.
Não do lar. Não das religiosas. Não das actividades: - “imagine a senhora que até me puseram a representar teatro!...” – e ria, maravilhada com o que conseguira fazer.
O que a desespera, o que a põe fora de si é a convivência com as outras habitantes do lar. Falsidades, invejas, ciúmes mesquinhos, maldadesinhas industriosas, implicações miudinhas, desconfianças, intrigas...
A narração das pequenas histórias exemplificativas de tudo isto, histórias que se desenvolvem no dia-a-dia, na hora-a-hora daquela convivência não desejada, mal suportada, durou uma tarde inteira, com avanços e recuos, com repetições enfatizantes, pormenores rebuscados...
Quando, por fim, se despediu, agradeceu, agradeceu. E porquê? Se eu, desta vez, entontecida pelas histórias, até me esqueci dos habituais presentinhos de marmelada, um bolinho, uma compota...
Penso que o tê-la ouvido, o tê-la deixado aliviar-se daquele saco de mágoas, o tê-la deixado sentir-se mais próxima do seu antigo clima de confiança, do seu antigo mundo de relações, o tê-la deixado reviver a sua mais-valia individual, fora daquele mundo de comunidade forçada onde agora se move, penso que, neste dia, foi o melhor presente que podia ter-lhe dado.
Saiu, sabendo eu e ela, que iria voltar de outras vezes, sabendo que aqui poderia, uma vez mais, encontrar o alívio para uma nova espécie de mágoas...

E foi então que se me instalou um nó na garganta, porque acabara de se me tornar evidente a inevitabilidade de uma espécie de divisória que, a certa altura de todas as vidas, se ergue, barrando um percurso, obrigando a outro.
Basta, para isso, que qualquer parte do nosso mecanismo físico claudique, umas vezes apenas porque simplesmente envelheceu, outras vezes, porque os insidiosos disparos das doenças podem colher-nos à queima-roupa ou, tendo corroído de mansinho, resolveu eclodir num certo dia, como a lava de um vulcão adormecido...
De repente, para todos nós, num certo dia, tornar-se-á evidente que é forçoso passar para o outro lado da divisória.
Adeus independência, adeus escolhas próprias, mesmo até: adeus solidão!
Doce e reconfortante solidão que nos permite sermos donos de nós mesmos, das nossas memórias até às nossas manias.
Doce e reconfortante solidão!
Doces sinais de vida, ainda!...

07 abril 2007

Tríduo Pascal

Como eu gostava de que todos os meus amigos que, quase orgulhosamente, se dizem ateus compreendessem que a FÉ não é uma coisa que se aprenda, que se estude, que se imite, que se deduza... Tenho suportado alguns afrontamentos mais ou menos subtis, não directamente por causa da minha FÉ, mas por causa da prática do culto que a ela corresponde. Chegaram já a questionar-me pela incoerência,(quanto a eles) entre as minhas práticas de culto e a minha inteligência. Supor, calcular, depreender sobre exigências ou reacções da sensibildade do "outro" é sempre falível e os meus amigos ainda não entenderam isso. Até porque, com um conhecimento superficial e primário da História da religião que professo,é claro que não podem compreender o que significa, por exemplo, ouvirem-se determinadas partes das LEITURAS e da própria MISSA, umas vezes de pé, outras não. Este seria um tema que me faria alongar muito, o de explicar o que já desisti de explicar-lhes, quando o que eu queria era mesmo falar destas celebrações do TRÍDUO PASCAL nas quais venho tomando parte ao longo da minha vida, sempre com igual sensação de pobríssimo acto de contrição e simultânea declaração pública da minha indefectível dedicação a esse JESUS que, esse sim, me foi "APRESENTADO", logo que nasci, por uns PAIS que eu fui vendo adorarem-no enquanto eu fui crescendo e aprendendo o Mundo... Quanto a actos de culto, tenho presenciado como é fácil aos Homens praticarem-nos por causas que nada têm que ver com aquela fundíssima dignidade que pode fazer de um de nós uma criatura sublime... E que eu creio que é a nossa parcela DIVINA!
Estivemos pois a rememorar aquela extraordinária ceia da qual emanaram todas as lições de humildade, de comunidade, de amor total, de paciência, de comprensão e,depois, estivemos postos em presença da CRUZ. Foi notável, como nos é tão preciso o silêncio para melhor "ver". No dia seguinte ao do movimentado Lava-Pés, foi uma longa e silenciosa fila de adoradores da CRUZ que nos permitiu pensar como CAMIILO PESSANHA "Oh quem pudesse deslizar sem ruido//no chão sumir-se como faz um verme..." Perfilou-se perante nós e a nossa pequenez a imensa solidão daquele CRISTO injustiçado, injuriado, torturado, só porque acreditou que nós o mereciamos...
E revivemos as grandes figurações das procissões que nessas horas o povo acompanha pelas ruas

O CRISTO, AO ALTO, ALONGA OS MAGROS BRAÇOS NUS
[...]
PENDENTE DA CRUZ NEGRA, ENVOLTO EM LUAR FRIO
[...]
E O CRISTO AVANÇA, Á LUA, ESPLÊNDIDO E CHAGADO

(José Régio)

A fortíssima marca que nos encharca a alma irá, como é costume, aligeirar-se com o festivo tilintar dos sinos da noite da nunca compreendida RESSURREIÇÃO...
É matéria de alma e disso os meus amigos nunca saberão nada !