31 julho 2008

Tempo de revisões

Tempo de férias, além de dar umas boas oportunidades a uma certa preguiça, dá espaços alargados para conversas inesperadas com pessoas que, noutra época, vemos pouco. E não é que nos sabem tão bem estes reencontros ? Fala-se de coisas novas e diferentes às quais não nos permitimos aceder quando andamos "programados" para o mais urgente dos nossos trabalhos...
Aconteceu-me agora, ao recordar com uma amiga da minha geração as nossas respectivas professoras e escolas que se chamavam primárias nessa época, relembrarmos como era prática habitual termos que debitar em determinadas aulas, poemas de autores consagrados ao tempo, os quais decorámos tão eficazmente que ainda agora, nestas nossa idades, os conseguimos declamar com muito poucas omissões. De recordação em recordação, fizemos reviver não só A BALADA da NEVE, mas também O PASSEIO de SANTO ANTÓNIO e o extraordinário NOIVADO do SEPULCRO . Mas as nossas memórias perderam-se com ...minha velha ama que me estás escutando canta-me cantigas para me embalar e também com o Amo-te ó cruz no vértice firmada de esplêndidas igrejas e ainda aquela dolorosa Venda dos Bois-:com que então você quer livrar o seu rapaz? e descascava um fruto... Perdemos autores( do que muito me envergonho, devo dizê-lo ) mas não imaginávamos sequer o enorme prazer que nos trouxe aquilo de que nos fomos lembrando ! Até nos vieram à memória alguns fragmentos de músicas com que alguns destes poemas foram mesmo musicados. Usou-se durante muito tempo cantar os bons poetas ao piano, em serões familiares, e aí também as meninas da família recitavam... Constatamos a "espessura", o "peso" dos temas ultra-românticos postos sem nenhum problema na boca das crianças que fomos , e comparamo-los com as infantilidades que se proporcionam às gerações de hoje , mesmo muito para a frente daquilo a que até se deixou de chamar primária.Afinal, tempo de férias pode ser por muitas vias tempo de revisões, de interrogações, de opções e também de decisões...

20 julho 2008

Ser REFORMADO, hoje

Quando, em 93, pedi a minha passagem à situação de reformada, embora não tivesse ainda cumprido todo o tempo que institucionalmente era considerado tempo exigível a qualquer funcionário público, nunca se equacionou nos meus planos de vida e nos daqueles que então apoiaram a minha decisão que, anos mais tarde, a existência desta categoria de pessoas pudesse vir a transformar-se num dos maiores,se não o maior problema dentro da situação económica do país. Creio que se esperava que, muito naturalmente, os que se reformavam fossem ordeiramente morrendo para permitirem "espaço" para outros que iam chegando... Creio também que nunca se pensou que o número dos que iam trabalhando não iria crescer na proporção suficiente para garantir o fundo financeiro necessário para assegurar a manutenção económica daquele grupo de pessoas que teimava em não morrer... E assim, enquanto eu e os meus complicativos processos osteoporóticos vivemos alguns anos numa beatífica paz de consciência, sem uma única sombra a perturbar as minhas mais ou menos regulares confissões quaresmais, e enquanto até me sentia um pouco orgulhosa por ter conseguido aprender a governar um bem apertado orçamento mensal e uma certa descida no padrão de vida, enquanto isto, repito, vejo-me de repente transformada na pior das oportunistas, a viver à custa de tanta gente sacrificada, ralada, persistindo em estar aqui, em estar sempre mais carente de cuidados e não produzindo senão mais um algarismo para as estatísticas mal agoiradas do senhor Ministro... Não se pode dizer que seja esta uma forma de viver, já não digo feliz, mas pelo menos desassombrada ! É que não é só a má consciência : há também aquela sombra permanente de uma "espada de Damócles" sobre a minha cabeça...
E como apetece começar a alardear o trabalho que se "deu" !
Mas, não entrando por aí, acontece que, tendo recebido agora de presente um pequeno livrinho de poemas do autor japonês Issa Kobayashi , constituido por um género tradicional do Japão de pequenos tercetos com apenas cinco e sete sílabas,sem rima (haikus), onde um poeta já idoso se não envergonha da sua velhice encantada com a Vida, eu recordei todas aquelas homenagens que me prestaram e são tão habituais a quem "parte" para a Reforma : os jantares, as flores, a placa de prata gravada a elogios, os presentes com assinaturas de toda a gente, directores incluidos, mas com discursos... E, no meu encantamento pelos poetas orientais, o meu próprio discurso foi a leitura de uma adaptação feita por António Cardoso Pinto sobre um poema chinês:

Porque é preciso partir,
a cada momento.Sempre.
Para qualquer lado.
Ir ! Um gesto, um olhar...
Viajantes somos, das coisas,
dos sonhos,
das estrelas,
do tempo !
Ícaros que ensaiam o voo inverso,
agitando a golpes de asas
as paisagens interiores
do nosso imenso universo...
Avalon, Xangri-la,ou Ilha dos Amores,
Viajantes sempre,
e de uma História sem limite
que continuará...

De 93 para cá, eu creio que este vai continuando a ser o meu discurso... Apesar de tudo...

13 julho 2008

QUEM TEM OUVIDOS PARA OUVIR...

Estamos em meio do mês de Julho, acabaram-se aulas e exames, as inscrições nas Universidades já passaram aquela fase tormentosa e, sendo assim, muitas famílias puderam ir para férias ,uma vez que os mais velhos haviam preparado os planos de férias nos seus trabalhos de maneira a que coincidissem as liberdades de todos para, juntos, poderem sair, viajar, mudar de clima.
Quando eu fui estudante e ainda não existia a paixão ( e a possibilidade ) das viagens, todos iam para a praia e muito poucos, primeiro para a praia e a seguir para o campo, como diziam os médicos que era perfeito para a saúde. Agora a praia frequenta-se durante quase todo o ano e não admira pois que, nesta altura, configure o escape mais fácil e rápido de obter, ainda que mais lá para a frente possam surgir outras saídas mais sofisticadas... Este é então o fim de semana em que os areais portugueses vão regurgitar... Pela moda, pelo bronze...pela urgência !
Não será não aquela sedução do grande espaço aberto e estranhamente silencioso dos azuis que se confundem na distância e nos levam a sonhar com o infinito.
Curiosamente,São Mateus diz-nos no Evangelho de hoje que Jesus saiu de casa e foi sentar-se à beira-mar. E também uma enorme multidão o rodeou... Sabemos como Jesus sempre procurava zonas solitárias e silenciosas para meditar e estar com Deus, por isso podemos imaginar o que ele desejava, quando se foi sentar á beira-mar... No entanto, os seus pensamentos não deixaram que perdesse esta oportunidade de comunicar, tal era a apetência que via no auditório e provavelmente de tal forma era propícia a beira-mar... E assim, subiu para um barco ali varado, dando-lhe a dignidade do melhor púlpito, e começou a dizer... Como sempre a sua palavra ia direita a uma audiência ávida e seca de expectativas, e era doce e misterioso o que dizia... Foi pois ali, junto do imenso e misterioso mar que disse, não só àquela multidão, mas a todos nós: QUEM TEM OUVIDOS PARA OUVIR, QUE OIÇA !... ...

08 julho 2008

A Cidade e os Vizinhos

As primeiras notícias que ouvi, consciente, já totalmente fora daquele limbo dos momentos iniciais de cada acordar, foram as de que um devastador incêndio estava ainda a acabar de devorar dois prédios na Avenida da Liberdade, mesmo ali já perto dos Restauradores. Um deles há anos devoluto. Oco. Tanto quanto me lembro, sem grandes sinais exteriores de deterioração, como tantos outros cuja aparência nos confrange, espalhados um pouco por quase todos os bairros mais antigos de Lisboa. E assim foi que todo aquele caudal habitual debitado por todos os fazedores de notícias da manhã de ontem, mesmo não havendo felizmente vítimas ,veio até nós impregnado dos medos, das extrapolações, dos " choradinhos", dos "o que é que sentiu quando..." a que já vamos estando habituados, o que é pena, porque acaba por já quase nos imunizar contra coisas que, na sua genuina tipicidade, são deveras dramáticas e merecedoras de uma nossa muito maior atenção. E até de desgosto, pela verificação da nossa impotência enquanto cidadãos que, amando a nossa cidade, gostariamos de ver nela, sempre, a nossa bonita terra, mais bonita que qualquer outra, isto é, melhor para si e para os que a povoam, velhos, novos, pobres, menos pobres, solitários, filósofos ou poetas... Porque afinal é da sua gente que acaba por também resultar o cariz de uma cidade. Dos desgraçados que acabaram por escolher para morada uma bela casa abandonada que irá diluir-se em chamas ao surgimento da mais ou menos próxima fatalidade, a cidade não pode, não deve alhear-se, mas fica com eles mais triste, menos propícia a uma felicidade que todos merecemos... Por isso a desejava eu fora das parangonas destes noticiários e limpa e livre das ruinas mal disfarçadas, das catástrofes mais ou menos prováveis e das imprevidências mais ou menos impugnáveis...

No turbilhão de pensamentos como estes, em que a minha solidão me leva a desejar tanto sentir-me "parte" de algum "todo", volta a reformular-se-me o problema daqueles que, na nossa cidade, não sendo da nossa família, não sendo amigos de infância ou de desempenho profissional, não sendo nossos companheiros de estudos, são no entanto as pessoas que vivem mais perto de nós, que acompanham voluntária ou involuntariamente cada passo de cada dia das vidas que temos, que vão sabendo das nossas fraquezas e das nossas forças, que se apropriam com ou sem maldade, com ou sem solidariedade, de algumas preocupações e algumas alegrias nossas,que conhecem intimidades , desde hábitos de vida, manias ou manhas, até ao mais secreto das nossas saúdes... Os VIZINHOS... Vivo no mesmo prédio há cinquenta e sete anos. E,durante todo este tempo, só em dois dos andares houve mudança de habitantes. Sendo um prédio de apenas três andares, com direito e esquerdo, somos tão poucos que seria impossível vivermos paredes- meias durante tanto tempo sem que entre nós não tivesse crescido uma relação especial. Mas ( e para mim a pergunta é recorrente )que relação é essa ? Se me reportar a alguns conhecimentos históricos, recordo que nos primordios ainda de uma pré-civilização, o instinto de sobrevivência e de consequente defesa levou os primeiros grupos de seres humanos a juntarem-se, constituindo pequenas células que os sociólogos já consideram com muito interesse enquanto esboços de uma socialização mais ou menos tendente a consolidar-se. Com o progresso da HISTÓRIA assistimos ao nascimento de cidades, onde ,por exemplo, os Romanos já contavam com o aproveitamento do espírito gregário dos vizinhos para formarem as suas civitates. E daí ao aparecimento dos MUNICÍPIOS, nunca o elo de ligação entre vizinhos deixou de constituir uma força socializante. Portanto, não me parece descabido considerar a sério a relação de todos nós, moradores do mesmo prédio, como uma relação sui-generis mas efectiva, real. E nunca de pretender ignorar ou desvalorizar.
Quando existam trinta ou quarenta vizinhos dentro de um só prédio, como nos grandes imóveis destaLisboa séculos XX - XXI, para além de termos que contar com uma maior mobilidade deles ,inerente a muitos novos factores próprios da moderna vida social e económica, percebemos quanto seria difícil uma relação de proximidade entre tanta gente e como é até natural que muitos nem tenham oportunidades para conhecer-se. Aliás,persiste uma espécie de "regra de ouro ", que sempre foi respaldo de gente a viver em proximidade, e que já vigorava nos meus tempos de menina : não devemos intrometer-nos com vizinhos, nem tão pouco permitir que os vizinhos se intrometam connosco.Isto tão só porque pode haver perigos morais ou mesmo materiais numa relação de intimidade com alguém que só se conhece superficialmente. E não será pelo facto de ser vizinho que alguém de mau carácter irá modificar-se... Além de que a"imposição" de uma presença nunca será agradável e será de pequenos contactos atempados e oportunos que se irá tecendo uma boa relação de vizinhança. Mas, em nome de tal precaução ,será possível não se sentir algo de especial por aquelas pessoas que conhecemos jovens, que depois casaram e tiveram filhos, os quais cresceram sob os nossos olhos e vieram a casar também , pessoas que, mais tarde, começaram a ter doenças e vieram a perder maridos, filhos ou pais, e ficaram em solidão, envelheceram, precisando de amparo moral ou físico, mesmo quase debaixo do nosso tecto, só porque entre o nosso e o evoluir das suas vidas há um patamar ou um lanço de escadas ? Sei que sofreria de facto se alguma destas pessoas desaparecesse de ao pé de mim.E sofreria como? Como iria colocá-las dentro da relação daqueles que já perdi? Como simplesmente VIZINHOS !... Não se trata de um parentesco e nem sei se poderá ser sempre uma amizade.
A simples ideia de partilha em situações de mera conjuntura acabou por fazer nascer laços. Como na Pré-História ! ... Dir-me -ão que se tem visto "brotar" e desenvolver ódios ou desamores entre vizinhos quase sem razões .Mas isso mesmo é prova da especificidade deste tipo de relacionamento. Para mim, olhando os noticiários das tragédias urbanas que trazem para a rua , em noites e madrugadas de pavor, todos aqueles vizinhos sofridos, aterrados e irmanados no sofrimento do susto e do medo, fica-me sempre mais intensa a convicção de que é preciso para exprimir tudo isto criar mais do que a palavra que me faltava : vicinidade... um espírito, um sentimento novo, uma vivência à qual não podemos negar um importante lugar nas nossas vidas,Esta casa, este bairro, esta rua, esta CIDADE, teriam sido os mesmos para mim se não tivesse tido estes meus VIZINHOS ?...