25 junho 2008

Lisboa à espera


Lisboa, eu e o seu pequeno-grande mundo de agentes de manutenção temos muitas vezes grandes desaguisados que nunca saem felizmente da minha rebarbativa mas pouco operante capacidade de indignação ou de diversão, muito conforme à gravosidade das ocorrências e ao prisma crítico através do qual eu as olho.Quantas boas gargalhadas tenho rido no silêncio das minhas observaçôes !!! Aconteceu ontem. Estava só, como quase sempre .Amo a avenida onde moro há já mais de meio século. É ampla de tal maneira que, agora que começo a ver pior ao longe, não distingo as feições de quem passa ou vive no outro lado da avenida. E os seus larguíssimos passeios têm abundante vegetação em placas centrais cobertas de relva ( só quem não a tem ou teve ,sabe da dificuldade que é mantê-la) onde estão implantados frondosos arbustos que dão flor em épocas e cores desencontradas e, mais maravilhosos que todo o resto, enormes,majestosos e quase perenes de verdura uns olmeiros que vi crescer e hoje atingem ( ultrapassam? ) a altura dos prédios laterais .Há um deles mesmo em frente da janela do meu quarto que me serve de cortina nas madrugadas de verão e onde vivem famílias de melros cantores que me acordam no lusco-fusco das primeiras horas do dia. Soube sem muita certeza que toda esta parte da avemida terá um meio quilómetro de extensão. E é contra este meio quilómetro que se encarniçam os modernos paisagistas citadinos, sendo sonho e projecto de pequenos autarcas nas várias eleições que aqui vivi,dar uma volta aos passeios,à relva e aos olmeiros para melhoria da vida dos moradores.São precisos espaços para estacionamento dos carros, sim senhor.Pois vai-se aos passeios grandes e...zás ! É verdade que as grossíssimas raízes dos olmeiros chegam a levantar o empedrado dos passeios e até a imiscuir-se em algumas canalizações de esgotos...Vamos aos olmeiros e...zás ! Para mais, alguns envelheceram e deixaram-se já cair, sacudidos por algumas fortes ventanias invernosas. Pior,pior, foi que caíram sobre uns dos tais carros que ali não deveriam estar...Só prejuizos, complicações, que não se compadecem com florsinhas,relvas e passarinhos... Eu entendo,só que tenho pena... Mas o Mundo é perverso e, com eleições ou sem elas, os sonhos ficam engavetados há anos pela falta da chave que os desengavetaria : o dinheiro. E a força da Natureza é de tal forma poderosa que os olmeiros crescem, crescem, em todas as direcções parecendo mesmo um desafio à ira dos prejudicados : começaram a entrar-lhes pelas janelas, pelas varandas, a tapar-lhes o sol, numa pujança linda de ver mas já a tornar-se mesm perigosa . Àlem de tudo o mais, até para a segurança de bens e pessoas aquelas ramadas dentro das varandas começaram a ser ameaça em vez de fruição.
Foi assim que o autarca desta freguesia pensou a solução rápida e possível e, se bem o pensou , melhor o fez. Uma equipa, umas serras e serrotes, um bom desbaste nas partes baixas dos olmeiros. Boa ideia dissemos nós,os fregueses que percebemos o que iria acontecer.
Começou a operação, com respaldo da Polícia Municipal, aí pelas oito horas da manhã. O povo ia passando e olhando de lado para umas fitas demarcadoras de áreas e uns polícias por ali passeando. Nada mais. O POVO mostrava-se agastado por não o deixarem passar pelos trilhos que estava habituado a percorrer todos os dias; não lhe ocorria que se estava a começar a cuidar de algo que só iria reverter em seu favor. O POVO sempre desconfia, se lhe tocam na rotina... Velhas memórias ? Preguiça ?... Seriam umas nove e tal, chegou a "equipa" : um senhor de calça cinzenta e camisa branca, impecáveis, começou a tentar pôr em acção uma pequena serra mecânica daquelas em que é preciso puxar com energia um fio que lhe"estimula" o movimento. Havia um outro homem de camisola larga e coçada e um rapaz,talvez caboverdiano. A serra não pegava e todos se mostravam pesarosos, parados, olhando sem esperança para o insucesso da operação. Até que o homem mais bem vestido usou o telemóvel. Entretanto apareceu ainda uma outra pessoa de cor, vestida de azul vivo. A EQUIPA parecia completa.Aparentemente em socorro da serra que não pegava,veio uma bela carrinha que trazia ainda uma escada de alumínio parecida com uma que eu tive mas esta era de aumentar, quase como as dos bombeiros. Muito mais tarde no dia, voltei a pensar nos bombeiros. Não seria esta uma tarefa que eles fariam rápida e profissionalmente ? Claro que nós os urbanos não sabemos nada das profundidades políticas desta coisa, mas a operação deu para que durante todo o dia, os homens da equipa fossem atirando por terra os grandes ramos incómodos, encarrapitados uns na escada mais ou menos extendida, outros em baixo a ampará-la, usando serrotes e, muito esporadicamente, a tal serra caprichosa que só pegava às vezes. Andei de janela em janela a assistir ao mais flagrante desconhecimento de como se trabalha em equipa, de como se programa e distribue qualquer tarefa e de como se pode depois alardear que se fez um trabalho importante, quando tudo aquilo era tão ridiculamente simples, como, por exemplo o acomodar da enorme ramagem caída sem usar o processo de um só homem a transportar às costas ,ramo a ramo, para um contentor previamente colocado na esquina da rua diametralmente oposta ao local da operação.Houve situações assim tão cómicas que não foi possível deixar de me rir. Para o não fazer sózinha, telefonei a uma amiga que mora na"outra margem" da avenida e a quem "pertence" a árvore intervencionada. Como eu, ela estava perplexa com o que via...Em conclusão : foi todo um dia de trabalho de talvez técnicos e ajudantes mas a casa da minha amiga ficou de janelas iluminadas pelo sol de um fim de dia de verão, coisa que ela já nem sabia o que era. O olmeiro está lá, despido das ramagens indesejadas, em perfeito traje de verão... A equipa desapareceu á hora própria... Lisboa continuará deste modo... à espera de muita coisa ! E o "meu" olmeiro,esguio e bem comportado continuará a albergar a família de melros cantores,meus companheiros...

22 junho 2008

Os cento e vinte anos de Pessoa

...e então não é que, no fascínio das férias, me encontrei, como em pequena, a situar-me tão longe daquilo que considero trabalho que até perdi o conto aos anos do Fernando Pessoa embora o recordasse no dia de Santo António, nem eu sei bem porquê... Isto que vou escrever é mesmo um mea culpa de professora ( nem sei se de portuguesa ou se de pessoa de LETRAS ) , mas nunca fui admiradora senão da Mensagem de PESSOA. Trabalhei sempre muito cada heterónimo, desde os de sempre até cada um dos que nos têm vindo a aparecer abundantemente...E digo trabalhei porque àquilo a que não me entrego com entusiasmo e até paixão, se acaso tem a forma de um dever ou de uma necessidade, procuro sempre compensá-lo com trabalho, já que não posso abordá-lo de outra forma. Isto explica então que os cento e vinte anos do poeta se tivessem diluido na minha euforia do "não pensar, não lembrar,não rebuscar".
Viessem falar-me sim da revigorante "juventude" do meu CAMÕES de que felizmente se não alhearam os construtores das provas de exame deste final de ano lectivo ! Foi sempre da sua transbordante capacidade de amar o país, as terras, os deuses, as gentes,os mares e as mulheres que recolhi uma lição de resistência, como parte que eu sei que sou neste Mundo.Neste Mundo que ainda não me deu motivos para o tédio desmultiplicador e sempre mais entorpecente de Pessoa...

20 junho 2008

Férias

É muito interessante saber-se que férias e feira são palavras filhas da mesma mãe latina e que, por conseguinte, nas duas subjaz a mesma ideia de pausa e liberdade e festa, que é como quem diz o soltar-se, o descobrir~se, o expor-se, o mostrar um outro lado de si mesmo que tantos imponderáveis obrigam a fechar por vezes "a sete chaves" dentro de nós mesmos. E é realmente uma alegria, uma festa, quando a "feira" dos nossos sentimentos, dos nossos gostos, dos nossos pensamentos e opiniões encontra o espaço para abrir-se e mostrar( ou propor ) o que tem de mais genuino "em stock"... Foi assim agora. E porque feira é troca, trouxe comigo um sem-fim de coisas novas, montes e vales a reverdecer,onde há poucos anos foram brasa ou labareda, pequenos rios represados a espaços criando praiínhas onde retoiçam crianças e jovens, cidades que conheci vilas e hoje se envaidecem de avenidas, rotundas, parques de estacionamento cronometrados e despropositados gigantes ,já não só super, mas hiper, locais de tudo vender... Um país novo a crescer sobre a raíz já exangue do outro que eu conhecera !
Mas há também as pessoas e as coisas novas que elas fazem, e as libertam para podermos falar de coisas boas e novas... E como é possível rodear-se a gente de uma tecnologia sem a qual já não se pode viver, já ninguém sabe viver...Rega-se a horta ou enche-se a piscina a horas impecavelmente certas sem ser preciso ir lá,estar por perto...As flores abrem na mesma mas maiores,mais coloridas, os morangais desdobram-se a dar frutos óptimos e rescendem por todo o lado os cheirinhos de cozinhar sempre húmidos e frescos...Aprendi a, pela noite, pelas longas conversas sob as estrelas, ouvir subitamente um eclodir de águas, sem ver chuva...Era uma espécie de "fantasma" zelador de hortas e jardins que chega sempre a horas e traz consigo o perfume da terra a envolver esta nova noção de liberdade...
PORÉM, numa outra latitude ,sem retornos mas interesses, sem o abraço da TERRA, sem o carinho de AMIGOS , coincidiu haver FEIRA, mas sem FESTA em liberdade, como é devido .As gentes da nossa Terra desejavam e mereciam trocar com " os rapazes da bola" as suas vis tristezas agora habituais, pelo voo libertador de uma límpida vitória que eles não puderam dar-lhes. Também trouxe "isto" das férias.Também isto é o Mundo Novo ! Continuaremos a ter que O aprender...

02 junho 2008

Canção do tempo fugaz/ 2-6

A água corre,jamais regressa
à nascente da montanha.
A flor cai,jamais regressa
ao ramo que a sustentou.
Fugidio relâmpago a Vida !
Apenas o sentir do seu passar...
Imutáveis Céu e Terra.
Tão rápida a mudança no meu rosto !

Li Bai, poeta chinês ( anos 701-762)

01 junho 2008

Pobreza

Nesta época terrível que já estamos a viver, coisa que em toda a minha vida nunca me foi dado ver, nem mesmo durante os ,grandes racionamentos do tempo da segunda Guerra Mundial, há pessoas de um estrato social ao qual nunca atribuiramos a qualificação de pobres-pobresinhos de pedir, que estão agora a recorrer a práticas de sobrevivência que eu julgaria impensáveis para qualquer pessoa, mesmo sabendo que para os tais pobresinhos elas existiam e me confrangiam dolorosamente. Na fase inicial do grande afluxo de imigrantes provenientes do leste europeu, foi-nos mostrado nos noticiários televisivos o degradante espectáculo de filas mais ou menos ordeiras à espera, pela noite, dos caixotes de lixo postos na rua junto às portas traseiras dos grandes supermercados, para neles recolherem tudo o que pudesse servir-lhes para matar a sua fome ou a das suas famílias. Mas eu própria os vi remexendo os pequenos receptáculos para lixo suspensos nos candeeiros de rua e nos caixotes de lixo doméstico . Foram criadas várias instituições de caridade originárias, algumas, de igrejas de religiões não católicas, e outras de simples associações de solidariedade e começou-se a falar muito abertamente dos sem abrigo para os quais estas instituições criaram uma forma de assistência por meio de carrinhas que, pelas noites e madrugadas, se espalham pelas cidades fornecendo comida e há mesmo algumas que funcionam como posto médico rudimentar.E nós, os que não sabiamos como acudir àquelas pessoas, passámos a ter uma forma de o fazer,por interpostas associações. Mas, resultado do nosso cada vez maior conhecimento dos hábitos de outros países da Europa, da nossa cada vez maior europeização, começámos a usar aquele processo de nos vermos livres dos grandes"monos", lixos incómodos, colocando-os em certas zonas da rua demarcadas para esse fim. E é para lá que vão mobiliário, electrodomésticos, plantas secas retiradas de jardins, livros e tapetes velhos ou inúteis e roupas,domésticas ou de vestir. Há entretanto uns dias certos em que a Câmara manda proceder à recolha de tudo isto mas, nos espaços entre estas recolhas, aparece quem venha procurar aqui o que pode aproveitar para si. Já me aconteceu perder algum tempo a observar da minha varanda as aproximações de pessoas a esta livre oferta que se lhes depara inesperadamente quando passam por um destes depósitos de inutilidades. Quando, há poucos anos, esta prática começou a existir, a atitude primeira de incredulidade juntava-se aos olhares perscrutadores em redor e depois a uma avançada rápida e uma retirada ainda mais rápida com qualquer coisa arrebatada do monte,parecia-me, quase sem escolha. Contudo a habituação tem permitido aos aproveitadores um à-vontade sempre crescente nos seus abastecimentos deste tipo. Quando vi que ,vendo o que há, se parte e volta mais tarde com um carro para poder carregar o que se escolheu, deixou de divertir-me como sempre, esta observação, até ao dia,há pouco mais de dois a três meses, em que tive a certeza de que já não era o mesmo "tipo" de pessoas que andava por ali a tentar guardar em sacos que trazia, roupas de criança, malhas e sapatos e até uma ampla toalha que me pareceu de banho...Dizem-me que isto pode ser indicador de mais coisas que não da pobreza envergonhada, mas, quanto a mim, será sempre indicador de uma certa pobreza( talvez moral? ) para acudir à qual eu ainda não sei de nenhuma associação de caridade...